“Seria a vida um sonho cômico?”, Corneille
Recolho das leituras noturnas, sem os cuidados a que nos obrigam as notas de roda-pé, algumas descobertas aliciadoras.
As minhas abluções intelectuais desta noite levaram-me ao tratamento dispensado por um professor americano, chamado pelo nome sugestivo de Harry Frankfurt, sobre o conceito de “bullshitismo” nos perímetros da “pós-verdade”. [“Total Bullshit! Au court de la postverité”. PUF, Paris, 2018].
“Bullshitismo” é uma derivação direta de “bullshit”, que em nossa língua quer dizer besteira. “Bullshit”, em inglês vulgar designa “bosta”, no caso “besteira” ou “qualquer coisa”.
Frankfurt dá-lhe o batismo definitivo: “conversa fiada”. O “bullshiter” ocupa-se de falar sobre trivialidades, dos assuntos do momento e, via de regra, do seu desprezo e ou desinteresse na concepção do real, tipo “estou me lixando”, “não me interessa” — “foda-se”. [“A Grande Narrativa”, Johann Chapoutout, Editora Vozes, Petrópolis, 2023, p.296].
A verbalização dos fatos e das suas circunstâncias sofreu uma transformação brutal na mídia, no magistério e na militância (atividades que, hoje, se igualam numa redução lógica persistente). Nos tribunais, nas lides do governo, na caserna, no púlpito das trincheiras da fé, tudo parece ter assumido a formatação de uma incontornável “conversa fiada”.
Os analistas e comentaristas das redes sociais, são todos, com raríssima exceções “bullshiters”. Até na ciência, antigamente domínio e reduto inexpugnável de uma linguagem segura e logicamente construída, os enunciados e os conceitos moldaram-se às medidas ideológicas do “negacionismo” e do “afirmacionismo”. Construiu-se uma ciência “social”, “ politicamente correta”, de direita e de esquerda, na qual se acomodam militantes e ativistas, “bullhiters” atuantes e combativos no largo campo da “conversa fiada”. Na Igreja e nas fileiras das armas, as disciplinas exatas e as revelações teologais parece terem cedido espaço a leituras sociológicas e políticas de confissão facilmente reconhecida.
Aos que por infelicidade pensam diferentemente de nós, basta um “fucket you”, sumário, sintético apresentado resoluta e zombeteiramente por uma pensadora distinguida da Corte de Brasília.
Em um livro memorável, Chapoutot queixa-de do futuro que criamos: “O presente patina o futuro chega mecanicamente, porque o passado é despedido.” E retorna à carga: “ o que domina o campo das ideias é a ‘moda’ que pretende ser a última moda. A última moda surge sempre como a primeira verdade [Chapoutot, op.cit.].
O “bullshitismo” é uma forma de dizer as coisas em linguagem linear, ao gosto e à altura e nos limites dos usuários de uma informação “fácil”.
Poderíamos atribuir esse processo de vulgarização do conhecimento da realidade ao discurso simplificado e identitário de que se servem os “emissores” e “receptores” de uma pós-verdade arranjada. [Evoê, Barthes!].
Não é a ideia que importa, mas a forma como pode chegar aos carentes de informação.
Pela via acidentada da ideologia, a propósito, as convicções podem amestrar e submeter as consciências imberbes e pô-las a serviço dos dogmas da Revelação…
Em outras palavras, como fazer de um conceito, enunciado linear, a arma letal para o convencimento das gentes?