Foucault: sexo como criação de um dispositivo de sexualidade

História da sexualidade I, capítulo: direito de morte e poder sobre a vida. Foucault demarca uma transição de paradigma na política, já subjacente no título: a questão política decisiva de seu tempo não é mais um poder soberano absoluto com direito de morte diante de ameaça dos súditos, de um ponto de vista interno (o que fica patente na pena capital), ou diante da guerra, mediante ameaça externa; entramos, assinala Foucault, na era da gestão da vida, em duas vias, uma individual e outra coletiva. É no interior desta segunda via que o sexo se manifestará como elemento decisivo na relação de poder; é que o sexo se encontra na intermediação entre um e outro, como Sade se encontra na intermediação entre o sangue e a lei (entenda-se, a norma), entre o disciplinamento do corpo e a regulação da população. Cada um desses elementos, disciplinamento e regulação, possuem desdobramentos e uma organização próprias, subdivisões. Mas o que importa é constar que o sexo, segundo Foucault, só existe na medida da construção do dispositivo disciplinar da sexualidade. Esse elemento decisivo do <<dispositivo de sexualidade>> é o ponto crítico de Foucault para pensar seu tempo, se ele é ou não uma liberação do fardo milenar (Igreja Católica inclusa; tradição de denegação do corpo, idem) de não tratar daquilo que é elementar e constitutivo da espécie como do indivíduo. O sexo apresenta-se, assim, como enigma e como estigma a ser posto num discurso, a ser elaborado e incitado. Aqui, temos o lugar acertado da psicanálise e sua posição diante das investidas regressivas dos fascistas, em quererem retornar à ordem do sangue como fundante da lei social (diga-se, o Pai-Soberano) e a não-ingenuidade em achar que a liberação está na constante incitação a falar e a fazer aquilo que permaneceu reprimido, o sexo; não, Foucault aponta para um uso dos prazeres e dos corpos – que são arte (ars erotica), e não ciência (scientia sexualis).Numa época em que gerir a vida vai tornando-se a cada dia mais inviável, haja visto não vivermos em um estado de bem-estar social, mas num permanente estado de guerra, caberia perguntar a Foucault, ou nos perguntarmos mediante esse autor, até que ponto o caráter regressivo do nosso tempo não está a repor a primazia do direito de morte frente às múltiplas formas do poder de gestão sobre a vida: já não se trata tanto de corpos a serem normatizados, disciplinados funcionalmente, mas simplesmente de uma crescente massa falida, inútil frente à sua rentabilidade mediante trabalho abstrato produtor de valor.

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"

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