FORTALEZA, 23 DE ABRIL DE 1926 – Duarte Dias

Ao Sr. Redator, minhas congratulações pelo sensível texto publicado na edição de ontem deste jornal, dando conta do falecimento, no dia 21 de abril, do nosso querido e inesquecível amigo, sr. Vittorio Di Majo, também conhecido pelos mais próximos como Victor Di Maio.

Se o sr. Redator me permite, gostaria de expressar, através deste depoimento, uma singela homenagem a essa personalidade que tantas alegrias trouxe ao povo do Ceará, em especial aos habitantes dessa metrópole litorânea eivada de precariedades e dissonâncias sociais, ainda que nossa Fortaleza.

Era eu um jovem em busca de afirmação quando, nos idos de 1907, fui convidado por um amigo para acompanhá-lo ao saudoso Theatro João Caetano, que ficava na esquina da Rua das Trincheiras com a Rua Senador Pompeu.

Lembro com viva memória que se tratava de um sábado do mês de setembro, dias após as anuais celebrações comemorativas pela Independência do Brasil, quando uma multidão se fizera presente à Praça do Ferreira para ver a soldadesca desfilando sobre jumentos esquálidos ao som de uma tonitruante fanfarra municipal.

Um espetáculo realmente inesquecível, como se pode supor, mas por motivos bem diversos daquele que pude presenciar ao adentrar as dependências do disputadíssimo teatro, posto que neste tratava-se da fabulosa estreia do Cinematographo da Pathé Frères, que aportara em nossa capital por obra e graça do sr. Victor Di Maio, um ambulante italiano que se encontrava em turnê pelo Norte do país.

Confesso ao sr. Redator que fiquei por demais impactado com aquele acontecimento que anunciava, pelo menos para mim, o surgimento de um novo tipo de arte, o cinema!

Na cabeça, além do deslumbre, muitas perguntas: em que consistia a ciência por trás daquele mecanismo capaz de reter e replicar nossas imagens em movimento? Quais os impactos, do ponto de vista da mecânica e da filosofia, daquele aprisionamento da realidade? Haveria meios de obter semelhante retenção de imagens no Ceará?

Aturdido com a experiência, lembro de ter encontrado, na saída do teatro, um outro amigo das rodas de conversas nos cafés da cidade, Luiz Severiano Ribeiro, que parecia tão ou mais impressionado do que eu, mesmo já tendo, segundo me relatou, a oportunidade de ver algo semelhante quando da passagem de um circo pela cidade.

Não obstante o sucesso, foi preciso esperar até o ano seguinte para que tivéssemos uma nova oportunidade de contato com as maravilhosas máquinas projetoras do sr. Di Maio, o que se deu quando do seu estabelecimento definitivo em nossa cidade, precisamente no local do hoje extinto Theatro Art-Nouveau, que ficava em uma das esquinas da Praça do Ferreira, defronte o velho sobrado do Comendador Machado.

Foi nesse período de atividades do que viria a ser consagrado como o primeiro cinema com programação regular no Ceará que tive o privilégio, através justamente do meu amigo Severiano Ribeiro, de conhecer e estabelecer amizade com o sr. Di Maio, cuja fala mansa condizia com sua fina educação e atenção no trato.

De fato, tornamo-nos, mesmo com a grande diferença de idade que nos separava, amigos de conversas quase que diárias, muito por conta dos meus conhecimentos de idiomas estrangeiros, em especial o francês, língua de um dos países que mais lhe fornecia filmes, pelo que tornou-se comum auxiliá-lo nas correspondências com seus fornecedores.

Sou, por conta dessa experiência – e faço questão de afirmar ao ilustre Redator -, uma das testemunhas do total empenho, honestidade e seriedade com a qual o sr. Victor Di Maio tocava o seu negócio, sempre prezando pela qualidade dos filmes e pelo bem-estar da clientela, composta em sua maioria pelos membros abastados da nossa sociedade, o que, convenhamos, não poderia ser diferente, visto que, por conta dos insumos necessários ao bom funcionamento do negócio, o valor cobrado pelos ingressos geralmente estava para além das condições financeiras de grande parte dos nossos concidadãos.

Aliás, confrontado por essa dura e perversa realidade social, que a muitos isolava do saudável e necessário hábito do convívio cultural, não era incomum ao sr. Di Maio contrapor iniciativas como a que fez quando trouxe do Rio de Janeiro uma troupe artística do mais alto e afamado gabarito; ao término da concorrida noite de estreia na Maison Art-Noveau, onde a nata dos nossos poderosos se fez presente, ele recolheu toda renda e a destinou, na manhã do dia seguinte, para o Asilo de Mendicidade, numa ação que diz muito da sua  índole.

Me causava enorme revolta, portanto, quando ele me contava das várias  e injustas perseguições que sofria por parte de “inimigos ocultos” – era assim que ele, alma boa que era, denominava seus desafetos, sem querer lhes revelar os infames nomes -, gente que, muito provavelmente movida pelo repugnante hábito de ter inveja do sucesso alheio, dedicava-se a falar inverdades a seu respeito, muitas vezes espalhando panfletos apócrifos pelas ruas centrais da cidade, quando não sabotando, de forma temerária e criminosa, o funcionamento das próprias instalações do cinema, pondo em risco não só a continuidade da atividade, mas as próprias vidas das pessoas que frequentavam as sessões artísticas.

A tudo isso resistiu meu nobre amigo, ele, um pioneiro inconteste do cinema no país, responsável pelas primeiras exibições em solo pátrio e também pela primeira gravação de um filme com vistas do Brasil, conforme me disse em um final de noite estrelada na Praça do Ferreira, dias antes da minha viagem para Recife, contratado que fora para trabalhar na Société de Construction du Port de Pernambuco.

Já estabelecido em Recife, prossegui, mesmo que com maior espaçamento de tempo, tendo contato com ele, agora através de correspondências. E foi por meio de uma dessas correspondências que ele me falou da abertura de um novo empreendimento, coincidentemente erguido no Crato, terra dos meus avós maternos.

Tratava-se do Cinema Paraíso, o primeiro cinema construído no interior do Ceará, algo que só alguém com o espírito empreendedor e visionário do sr. Di Maio seria capaz de conceber.

No entanto, devo confessar ao sr. Redator que essa atitude aparentemente louvável se configurou em um grande erro. E acrescento: tivesse ele primeiro me revelado sua intenção, eu o teria desaconselhado da aventura, isso porque, como bem sabemos, 1911 foi um ano de sérias desavenças políticas na região do Cariri, com disputas por vezes violentas entre o Crato e Juazeiro do Norte, que buscava, há tempos, sua emancipação política, o que veio a conseguir ainda naquele ano.

Sendo ele um estrangeiro no Ceará, e mesmo estando já há 4 anos convivendo diariamente com as imprevidências que caracterizam nossa sociedade, creio que lhe faltou, com todo o respeito que nutro por ele, um pouco de capacidade interpretativa do nosso atual estágio civilizatório, ainda muito distante da realidade europeia e mesmo de outras regiões do país.

O resultado foi que o empreendimento no Crato provou-se desafortunado, causando um abalo considerável em suas finanças, mas não na sua fé no cinema, tanto é que ele me escreveu logo em seguida contando da sua intenção de fazer uma nova viagem à Europa, onde buscaria por filmes recentes e inéditos, além de novidades no campo da projeção.

Foi essa a última correspondência que recebi do sr. Di Maio, muito talvez por não ter havido, de minha parte, resposta.

Estranho em terra alheia, atarefado com minhas novas e crescentes responsabilidades e disposto a evoluir em um ambiente inicialmente hostil, não me coube mais tempo para compromissos que não os estritamente profissionais, algo que, reconheço, não deveria nos privar do bom convívio com os amigos e familiares, base de qualquer experiência que se queira minimamente humana.

Para não afirmar a completa perda de informações acerca do destino do dileto amigo, ainda cheguei a receber, no início de 1915, uma correspondência do Severiano Ribeiro na qual ele dizia ter adquirido o prédio onde funcionara o “Cinema DiMaio”, revelando ainda sua intenção de adentrar definitivamente nesse tipo de atividade, o que veio a fazer com merecido e destacado sucesso.

Sem mais notícias do sr. Di Maio desde então, foi com pesar e emoção que li, nas páginas desse ilustre jornal, a nota sobre seu falecimento ao 74 anos de idade, nas dependências do agora café “Art-Nouveau”, o mesmo lugar onde ele estabelecera, décadas atrás, o cinema onde desfrutei, junto com meus contemporâneos, alguns dos bons e inesquecíveis anos da juventude.

Consternado, fiquei sabendo ainda das tristes circunstâncias que cercaram seu desaparecimento: a pobreza extrema, a cegueira incontornável e a idade por demais avançada e aniquiladora.

Meu coração ficou ainda mais pesaroso ao tomar conhecimento de que ele reaparecera em Fortaleza havia poucas semanas, tendo por companhia, ao que consta, seu único filho, um garoto de 11 anos de idade, cujo destino está nas mãos de quem dele vier a se apiedar, como de seu pai se apiedou o bom amigo Severiano Ribeiro, que promoveu, em seu mais novo cinema e nas vésperas do infortúnio definitivo, uma sessão especial cujos rendimentos foram integralmente destinados a aliviar as necessidades prementes do sr. Di Maio.

Dizia Cícero, o célebre orador e filósofo romano: “Não há nada que não se consiga com a força de vontade, a bondade e, principalmente, com o amor.“

O sr. Victor Di Maio foi um homem que amou o próximo através da plena dedicação ao seu ofício, que consistia na divulgação da poesia das imagens em contraponto à realidade por vezes cruel e desoladora da vida cotidiana.

Muito me honra ter privado de sua amizade nessa existência, pelo que lhe dedico minha eterna gratidão.

Que descanse em paz.

  1. Laurindo de Sousa.

*Dedico esse texto ao sr. Ary Bezerra Leite, emérito pesquisador e escritor brasileiro, cuja opinião acerca de Victor Di Maio compartilho: “Há uma dívida especial de nossa terra ao combativo pioneiro. Um emigrante que deu sua contribuição ao desenvolvimento de Fortaleza, implantando aqui o primeiro salão permanente para as surpreendentes projeções da nova arte. Uma personalidade que mereceria de Fortaleza a homenagem definitiva: seu nome perpetuado em uma instituição cultural, um empreendimento no campo do cinema, ou, por que não, dado a uma rua! Nas páginas da história de Fortaleza, contudo, Victor Di Maio conquistou seu lugar e o ocupa com reconhecidos méritos.”

 

 

 

 

 

 

 

Duarte Dias

Cineasta, roteirista, curador audiovisual, fotógrafo e compositor, Duarte Dias foi premiado em vários festivais de música no Ceará, tendo lançado seu primeiro álbum autoral, "Jardim do Invento", em fevereiro de 2019. Com premiações em festivais de cinema no Brasil e no exterior, ocupa a cadeira de n° 36 da Academia Cearense de Cinema. Idealizador e diretor geral do FestFilmes - Festival do Audiovisual Luso Afro Brasileiro, e ex Coordenador de Política Audiovisual da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (2016-2019), desempenha, desde 2015, as funções de programador e curador do Cinema do Cineteatro São Luiz e Assessor de Políticas Culturais do Instituto Dragão do Mar (IDM), vinculado a Secult-CE.

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