O mascarado Josias escolhe, calma e tranquilamente, laranjas no setor de frutas e verduras do supermercado mais próximo da sua casa, com uma pequena lista de compras e caneta Bic azul na mão esquerda e o comprovante de residência no bolso da bermuda preta, para qualquer eventualidade, em tempos de pandemia e controle rigoroso do distanciamento social imposto por decreto governamental. No meio da tarde, poucas pessoas vão às compras. E isso causa nele uma sensação de segurança, só comparável à sentida nas primeiras horas da manhã.
De repente, uma mascarada desconhecida, de olhos castanhos claros e cabelos levemente alourados, curtos e encaracolados, postada à frente do mesmo expositor quadrilátero, do lado reservado aos melões, dirige-lhe um pedido:
– Senhor! O senhor poderia escolher um melão pra mim?
Surpreso com a intervenção inesperada, ele suspende o que faz, desvia o olhar para a sua subitânea interlocutora e pondera (lembrando-se, num átimo temporal, de promessa recentemente assumida em caso análogo, que alguns transtornos lhe causou, quanto a jamais se envolver em idêntica situação, ou seja, fazer escolhas para os outros):
– Senhora, infelizmente, eu não sei escolher melões… nem costumo comprá-los.
– Mas o senhor não está aí escolhendo laranjas…?!
– É porque laranjas eu sei escolher… melões, não, senhora.
– Ajudar os outros nas dificuldades é uma… uma prática louvável, sabia? É uma atitude cristã!
– Sim, mas quando a gente sabe e pode ajudar. No caso, eu não posso porque não sei. E Deus sabe disso.
– O senhor é muito… muito arrogante.
– Arrogante?! Eu?!
– Isso mesmo, o senhor é…
– Senhora, por favor! Não veja em mim a solução ideal para os seus problemas pessoais, talvez até insolúveis…
Com gestual mesclando desprazer, irritação e estupidez, ela esbraveja, insolente e insultuosamente:
– Ora! Vá pra casa do (substantivo masculino, elemento de composição de impropério e tornado, por ato coletivo de usuários da língua e por efeito metafórico, palavra de baixo calão – ou seja, chula e obscena –, portanto impublicável, mas plenamente recuperável, por ser do domínio público; ou seria púbico?).
O mascarado Josias, deixando então aflorar a sua espirituosidade latente, retoca com pinceladas de jocosa dubiedade o desfecho de tão insólito colóquio:
– Cará ao alho?! Nunca provei, senhora, mas deve ser uma delícia. Cristãmente falando.
E a mascarada desconhecida some entre as gôndolas, fumando numa quenga, praguejando num estilo nada feminil, empurrando um carrinho ainda vazio.
Fique em casa, senão alguém, surgindo sub-repticiamente não se sabe de onde, com o rosto semiencoberto, protegido atrás de uma máscara de pano, de produção caseira, pode querer roubar a sua desprotegida maçã.