“EU” POÉTICO II (*)

 

QUINTANIANDO-ME, COMO SE POETA FOSSE:

“Se eu conheço algum segredo é o da sinceridade,

não escrevo uma vírgula que não seja confessional.

Esse desejo insopitável¹ de expressar o que tem dentro de si

é o mesmo que leva o crente ao confessionário e o incréu ao divã do analista.

O poeta prescinde de ambas as coisas,

e os que não são poetas, mas gostam de poesia,

desafogam a si mesmos através dos poemas que leem:

porque na verdade vos digo que

não é o leitor que descobre o seu poeta,

mas o poeta é que descobre o seu leitor.”

 

AINDA ARRISCANDO-ME NO DEDILHAR SÔFREGO DE UMA LIRA INVISÍVEL,

DESCUBRO-ME AMBIDESTRO:

NENHUMA DAS MÃOS INVALIDA A OUTRA.

EM VERDADE VOS DIGO, ELAS SE HARMONIZAM.

 

I – MÍNIMO (Mindinho)

 

A QUART’IDADE²

Se há verdade em ser a velhice o

OCASO,

Evitemos nós chegar lá por mero

ACASO.

Perfaçamos uma trajetória como a do

SOL,

Que sangra e esparge vida em cada

ARREBOL:

Luz e calor de pródiga e inesgotável

FONTE.

Irradiemos beleza até ao sumir no

HORIZONTE.

 

II – ANELAR (O vizinho)

 

OH!

(… a verdadeira virtude está no sincero e difícil arrependimento e não na inocência boboca.

Sob a sombrinha da sombria sogra (dela!),

a serelepe sobrinha serpenteia

sem cerimônias,

mas com invejável naturalidade!

Com que interesse?!

Que objetividade!

(…)

E eu – já desprovido de certos cuidados –

recrio as minhas inconcretudes,

que só me fazem mal à sexagenária saúde…

embora me transportem a outra irrealidade!

– Desejos pecaminosos?!

– Que mente perniciosa!

 

III – MÉDIO (Maior de todos)

 

PRECONCEITO

Tão velho, velha!

Tão negro, negra!

Tão pobre, pobre!

Tão magro, magra!

Tão gordo, gorda!

Você ainda não percebeu, entretanto,

que, ao mergulhar nos defeitos meus,

acaba se descuidando de todos os seus:

tão expressivos e perceptíveis quanto…

Viva da maneira que melhor lhe aprouver.

Regue sempre as rosas do seu belo jardim.

Liberte-se agora e integralmente de mim.

Vergue-se à regra inflexível: isto é o que é!

Deixe-me com meus espinhos conviver…

Pois o meu roseiral também vai florescer!

Por que inquietar-se com minha tão útil quietude?

Por que incomodar-se com minhas ditosas diferenças?

Meus frágeis excessos? Minhas robustas carências?

Jamais serei o que quer que eu seja: [Deus me agrade

no prazer da jovialidade e no declínio da senectude!]

não nasci pra ser seu espelho… Ora, veja!

Ao seu amorfo padrão não me amoldo.

Sabe por quê? Porque [Deus sempre esteja!]

sei ser feliz com os meus defeitos e vícios,

e, mais ainda, com as minhas vicissitudes,

que se dissipam ante as minhas concretudes…

Sou até invejado pelas minhas virtudes.

Sabia?!

Por favor, não ria!

Sorria.

Apenas isso.

 

IV – INDICADOR (Fura bolo)

 

O QUE VEIO À PLENA LUZ

(Espectador irônico de mim mesmo, nunca, porém, desanimei de assistir à vida).4

Desde que adquirimos a consciência do que seja a vida,

Uma certeza, uma verdade, absoluta, de nós se apodera:

Se nascemos – qualquer que tenha sido o tipo de acolhida –,

Um dia morreremos. De uma boa morte… quem nos dera!

N’ampulheta da vida, a tênue areia do tempo, lenta, escoa…

No fulgor da existência, efêmero e veloz, assim se pronuncia.

Se ainda a harpa de Eros o cântico vital maviosamente entoa,

É Tanatos, translúcido e espectral, quem sempre nos angustia.

Agora, já sob o cansaço de uma caminhada longa e prazerosa,

Apossa-se de nós outra certeza ou verdade, também absoluta:

Se ainda vivo estamos, quem próximo de nós sorri é a Morte.

Nada que nos deva amedrontar ou cercear-nos a boa prosa…

Nada que nos altere o pulsar do coração. Prossigamos a luta!

E, quando a passagem ocorrer, acolha-nos Deus em sua Corte!

 

V – POLEGAR (Cata piolho)

 

UM ETERNO ÓRFÃO

E a lágrima quente, veemente e visceral,

que emana da alma em impassível languidez

e desborda da pálpebra em contínua flacidez,

enquanto insensivelmente escoa, demorada,

queima e faz arder, agora, a face enrugada,

por indeléveis marcas da inexorabilidade temporal.

Curvo-me, então, desnudo de quaisquer artificialismos,

à sábia inspiração do genial vate lusitano a asseverar:

Considero a vida uma estalagem onde tenho de me demorar

até que chegue a diligência do abismo.5

E nada mais tenho a dizer; emudeço, portanto,

enquanto a alma antes irrequieta sangra em esbatimentos

e a imorredoura saudade insiste em apaziguamentos:

– Não pretenda ser um semideus, amiúde!

Seja simplesmente um homem submisso à sua finitude! –

E a vida vai cotidianamente perdendo os seus encantos…

 

DESASSOSSEGANDO-ME PESSOANAMENTE:

“Quem me pese que ninguém leia o que escrevo?

Escrevo-o para me distrair de viver,

e publico porque o jogo tem essa regra.”

 

E REVESTINDO-ME D’O APRENDIZ DE FEITICEIRO,

EM QUINTANA, PERIGOSAMENTE:

“Saberá mesmo um poeta em que consiste essa espécie de força oculta que o faz poetar?

Ele não tem culpa de ser poeta;

portanto, não tem do que se desculpar ou explicar.”

 

¹ Insopitável – impossível de reprimir, de conter, de controlar; irreprimível, incontrolável.

² “Saber lealmente gozar do próprio ser, eis a perfeição absoluta e divina. (…) Embora usemos pernas de pau, temos de mexer as do corpo para andar, e é com o traseiro que nos sentamos no mais alto trono do mundo. (…) Quanto à velhice, cumpre tratá-la com alguma ternura…” [tanto a minha quanto a dos outros]. Michel de Montaigne, (Livro III – XIII. Da Experiência), em Ensaios – tradução e notas de Sérgio Milliet – São Paulo: Editora 34, 2016; 1ª ed., págs. 1.024-1.025.

³ Mário Quintana, em Porta giratória – São Paulo: Globo, 2007; pág. 67.

4 Fernando Pessoa, em O livro do desassossego.

5 Idem, ibidem.

 

* Coletânea de 74 poemas de minha lavra, reunidos em livro publicado em março de 2019, com tiragem medíocre – apenas 5 exemplares (os cinco dedos da mão, em cujo centro veem-se, bem delineadas, linhas que formam o M da minha Musa inspiradora: Marileide, a minha eterna parceira).

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.