EU “ELÉTRICO”

Disseram-me, em muitas e diversas situações, que eu era “elétrico”. Isso certamente porque não me acomodo ao infrutífero “deixar o tempo passar”; até muito me incomoda o infecundo “não ter o que fazer”; e, se for o caso, crio, invento, procuro, descubro, elaboro, produzo – o que me importa é agir, ou melhor, é-me insuportável o improdutivo “cruzar os braços”, o não-agir. E, se o sangue ferve nas veias, ajo ou reajo, faço ou refaço, e, à Bilac, trabalho e teimo e limo e suo… ou disponho-me a, na mais frágil das hipóteses. Só assim não sofro. E, se me ponho a recompor as energias no sempre revigorante acolhimento da minha rede de varandas, não raramente as caraminholas efervescem, excitam-se as reações sinápticas e, então, labora-se quimicamente o livre-pensar; algo, regra geral, disso resulta – e que seja sempre positivo! Quando o sono me vence, Hypnos gentilmente manda o seu filho Morfeu velar-me, proteger-me – e o “elétrico” se transmuta em “onírico”; ele, o “ser alado e metamorfo” (ajusta-se a variegadas formas), então, apropria-se da minha irrequieta alma, agraciando-a com imagens, ideias, pensamentos, fantasias e até devaneios, tudo isso quase nunca submisso à perspectiva freudiana da “busca pela realização de um desejo reprimido”; na simplória perspectiva xykoluana, o sonho em mim se revela muito mais como a válvula de escape das energias não consumidas; é possível que “vaze pelo ladrão” o liquor que já não mais cabe no receptáculo. Acordo de paz comigo mesmo, com a agradável sensação de rejuvenescimento. Levanto-me pronto para o que der e vier.
É óbvio que a idade pesa. Aqui também. A voltagem já não pode ser a mesma. O agir progressivamente se fragiliza. O reagir já não mais adquire contornos de atitude; resta só a vontade, que, por ser atemporal, não emurchece, não envelhece. O querer aos poucos vai se distanciando do poder. Tudo de acordo com um processo natural, inflexível, inexorável, sob a firme batuta de um austero maestro “do calendário” em contraponto com o das “vivências e percepções” – mais Cronos (tempo natural, cronológico, quantitativo); menos Kairós (tempo existencial, psicológico, qualitativo). Recorro, então, a métodos de não-perdimento da jovialidade da alma. Submeto-a a formol se preciso for. Leio e escrevo. Penso. Reflito. Sonho. Não me dobro facilmente aos incômodos físicos, às dores musculares, às rigidezes articulatórias, às fragilidades viscerais, aos desequilíbrios estruturais, aos efeitos das comorbidades. A rigor, só me extenua a excruciante e debilitante dor ciática, afetando sobremaneira o músculo adutor de cada coxa e as panturrilhas; os consequentes enrijecimento e travamento me prosternam. Não me curvo às vicissitudes do cotidiano. Não me rendo – embora transija, contemporize – à certeza da minha finitude. E, se chove lá fora, liberto-me do casulo imaterial em que ora me abrigo e, descalço e quase desnudo, saio ao tempo e ao vento, gozo no entrechoque dos álgidos pingos com a calidez vital do corpo, embriago-me com a límpida água que escorre até pelas minhas intimidades – sinto até que ela aproveita a porosidade do revestimento dérmico para invadir o âmago do frágil ser em êxtase –, rejuvenesço, “recrianço-me” e, nessa condição de puro prazer, pleno e até irresponsável, corro, pulo, grito (“Manda chuva, mãe de Deus!”), chuto poças na calçada, sorvo com prazer o que me umedece os lábios, absorvo o cheiro único e universal da vida líquida, delicio-me com os intermitentes arrepios – subitâneos e inócuos curtos-circuitos na minha peculiar rede elétrica –, até perceber, com um misto de tristeza e frustração, que nada disso, na verdade, aconteceu. Consola-me o entendimento de que quem não sonha é porque já morreu… Vivo estou! Graças a Deus!

“Mas a vida é assim. Engana, engana, e, quando a gente já não pode mais, mostra o jogo.” (Uma dor, em Rua, de Miguel Torga).

E o jovem cirurgião, após desalentado sussurro – “Sem sangue…” –, a que se seguiu indagação óbvia – “E isso é bom ou ruim, doutor?” –, concluiu a sua obra com poesia de desassossego: “Ruim! Se há sangue, há vida!”. Ele acabara de intervir, sob anestesia local, em lesão ulcerativa no lado interno do hálux – mais conhecido como “dedão” do pé – direito, a qual insiste em não cicatrizar, evidência de alguma disfunção na circulação sanguínea em membro inferior, consequência da relação de convivência que, há mais de uma década, mantenho com um amigo de todas as horas: o silencioso diabetes. O Doppler Arterial me trouxe um sorriso de alento, cuja interpretação dos dados verificados revelou “Ateromatose moderada nos membros inferiores, sem evidências de estenoses críticas”, o que, para a especialista no assunto, significa “Nada de oclusões, apenas a ocorrência de algumas placas de colesterol que inibem, em cerca de 25%, o normal fluxo sanguíneo; e disso resulta a irrigação insuficiente nas extremidades dos pés – região plantar e dedos”. Indago, então, com incontida apreensão: “Posso tranquilizar-me, doutora?”. E ela, sem titubeios e com leve sorriso nos lábios, acalma-me: “Pode, sim!”.
O tratamento que se me impõe e que não pode sofrer adiamentos se insere na alçada de competência de profissional da área da Cirurgia Cardiovascular. E é pra lá que vou. Preciso conectar-me a uma adequada fonte de energia e, assim, retomar a voltagem capaz de manter bem aceso o meu “eu elétrico”.
Nota do Autor: Para inspirar-me na produção deste texto, a minha musa incorporou o perfil icônico de Glória Maria, a profissional que mudou a forma de fazer jornalismo, em especial o televisivo, e só assim pôde energizar-me na exata medida. Que ora ela – para quem “a língua que todo mundo entende é o idioma da alma” – tenha o acolhimento do sacrossanto colo de Maria, na Glória do Senhor! Assim seja.

“Glória não é um nome, é uma saudação. Maria não é um nome, é um destino. Destino que levou essa mulher ao jornalismo e a escrever seu nome na história da imprensa brasileira.” (Jornal O Povo95, edição de hoje).

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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