…Um tempo onde os jornais rivalizavam com o parlamento e com o executivo na produção e divulgação de ideias, defesas, ataques, contra-ataque, sempre de modo beligerante, panfletário, passional, arraigado, intestino. Um cenário de terra de ninguém onde a opinião se sobrepunha à informação. Esta parecia não ter a menor importância junto a mentes inebriadas por credos, supertições e heranças históricas, uma genética perversa na dicotomia do nós e do eles.
Os jornais eram essencialmente opinião com alguma precária literatura, notadamente os folhetins, naqueles impressos dos principais centros urbanos, notadamente Rio de Janeiro e São Paulo.
Tempo de reuniões, de agrupamentos, de arroubos dicotômicos, de partidarizações fanáticas, de conspirações, mas também
de formação de grupos literários, de saraus lítero-musicais,
da emergência dos cafés e das importações de mercadorias, de assimilação precária de comportamentos sociais e de modelos alienígenas para uma almejada convivência civilizada.
Os jornais, algumas dezenas deles, em todo o Ceará, eram o meio mais ao alcance da mão para estimular amor e repulsa e, principalmente, para destruir reputações dos donos do poder, leia-se dos donos da política e da economia. Uma tribuna e uma trincheira.
Um cenário tórrido onde emergiu a pena de João Brígido dos Santos, nascido no Rio, feito no Ceará, fundador de jornais, dentre eles o seu filho dileto, Unitário.
“No Ceará, por exemplo — anota Barão de Studart no Diccionario Bio-Bibliographico Cearense (1910) —, sob o domínio da oligarquia Accioly, o jornal do governo, ‘A República’, agredia os elementos da oposição, enquanto no Unitário de João Brígido, que combatia o governo local, tudo se marcava pelo espírito mordaz. […] na oposição, o Jornal do Ceará não tinha medida nas suas incandescentes apóstrofes.
O Unitário noticia assim um banquete oferecido a um deputado governista: “À sobremesa, em nome dos presentes, saudou-o o sr. Beltrano. Em seguida, Fulano ergueu-se nas patas traseiras, murchou as orelhas e pronunciou um discurso, curto mas ruim”.
O mesmo Unitário noticia assim um falecimento: “Faleceu ontem, o venerado desembargador C., filho legítimo do honrado vigário de São Mateus.” 1
“Foi a política que gerou o jornalismo cearense”, elabora Demócrito Rocha na perspectiva do que Antônio Sales já atestara: “As gazetas do Ceará eram meros instrumentos do ferrenho partidarismo reinante”.
O próprio Antônio Sales produziu uma original peça de crítica, ironia e humor, denunciando a política clientelista do governador do Ceará, Antônio Pinto Nogueira Accioly, cujo apelido, O Babaquara, virou título da obra homônima, editada em 1912, no Rio de Janeiro, tendo como subtítulo Subsídios para a história da Oligarquia no Ceará. Trata-se de obra que escancara a crítica contra aquele que comandou a política do Ceará por longos 16 anos, com demasiada intolerância e muitos episódios de truculência.
A título de epígrafe em O Babaquara, Antônio Sales reproduzia esses versos, de sua autoria, publicados previamente no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro:
…Este de falas tão comedidas,
Trazendo aos ombros imensa prole,
De ideias curtas, de unhas compridas…
É o Accioly…
João Brígido via no jornalismo panfletário “o meio de descarregarem as paixões, evitando-se as lutas à mão armada”. Uma catarse belicosa assentada na palavra impressa.2
— A linguagem era, no entanto, a mais desbragada, semelhante à dos pasquins manuscritos de antanho, colocados furtivamente por baixo das portas —, emenda Geraldo S. Nobre, o minucioso historiador da imprensa cearense.
Na prática, sempre aconteceram excessos que descambam em violência física. Os gorilas da polícia política do governo Accioly, por exemplo, escorraçaram o jornalista e poeta Américo Facó em plena Praça do Ferreira. Facó escrevia no Jornal do Ceará, de Waldemiro Cavalcanti, lançado no dia 16 de março de 1904, ferrenho opositor da oligarquia que dominou a política do Ceará por anos, transformando-a em um negócio de família. No seu editorial da edição inaugural, em primeira página, o novo jornal avisava:
O Jornal do Ceará procurará, antes que tudo mais, interessar a Nação nos negócios públicos, mostrando afinal que um povo que se agacha à ação da tirania é um povo que se degrada moralmente.
O Jornal do Ceará não se agachava, alinhando-se aos jornais de oposição ao status quo político. No editorial À vala, publica do na primeira página da edição da quinta-feira, 14 de abril de 1904, assinado por Waldemiro Cavalcanti, tínhamos uma pequena amostra da prática cotidiana em relação ao comendador e sua base:
[…]
Às pressas, chamado, corre à Palácio, o famoso jornalista João Brígido, que é solicitado para receber, em Camocim — antigo quartel-mestre de Jerônimo de Albuquerque —, o genro do Imperador e herói do Paraguai. A recepção foi um sucesso. Brígido, na versão do Anuário, cativou o Príncipe, numa Camocim embandeirada com o povaréu nas ruas, aos vivas e manifestações de estima, ouvia-se a cada minuto, o pipocar do fogueitório que subia aos céus da singela cidade litorânea, relata o Anuário do Ceará (1953-1954), de Waldery Uchoa. Na verdade, Brígido já conhecia bem o Conde, das reuniões do Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro.
No relato do Anuário sabemos que “ao desembarque do parente do Duque de Nemours, estava presente a fina flor da sociedade local e, com ela, afinada filarmónica que tocava dobrados marciais. Foi um Deus nos acuda!
[… ]
O estilo fluido de Brígido, “currente calamo” [ao correr da pena, aquele que escreve com rapidez], sua verve jornalística viperina principalmente nas páginas do jornal Unitário foram capturados na pesquisa do biógrafo Soldon para quem João Brígido nunca se abateu na luta, nem os perigos o fizeram recuar. Não transigia com os seus inimigos, ao contrário, oferecia-lhes o mais duro combate, sem temer consequências, pois pressupunha que a opinião pública estava sempre do seu lado. “E , se o seu jornal, por vezes violento e imoderado, impediu, sem dúvida, situações porventura mais imoderadas e violentas”.
O jornal Unitário foi a principal tribuna jornalística de Brígido. Um agressor de João Brígido e da sua família foi escanifrado desta maneira:
— Esse candidato, não se sabe bem se a deputado ou a jornalista, é um moço cujo talento só o pai reconhece, comparando-o a Rui Barbosa! Mas, quando se exibe na imprensa, não é melhor do que aquele, nem melhor do que o tio, quando pede a palavra na nossa Assembleia e faz suar os ouvintes. Com pequenas exceções, os componentes de tal família são gagos na voz e na inteligência, vendo as coisas de través, como verdadeiros estrábicos de letras que são…
(Trecho de um capítulo do livro O Diabo entre nós, em revisão final, ainda inédito)