Estrelas descem à terra, por PEDRO HENRIQUE

Em seu As estrelas descem à terra, Adorno escreve o seguinte: “O envolvimento com a astrologia pode oferecer àqueles que se deixam levar por ela um substituto para o prazer sexual de natureza passiva. Em primeira instância, isso significa a submissão à força desenfreada do poder absoluto. Entretanto, esta força e este poder que, em última análise, derivam da imago do pai saem completamente despersonalizados pela astrologia. A comunhão com os astros é um substituto quase irreconhecível – e, por isso, tolerável – para a relação proibida com uma figura paterna onipotente. Na mesma medida em que o sistema social é o destino da maioria dos indivíduos, independentemente de sua vontade e interesses, ele é projetado nas estrelas de modo a, assim, obter um grau maior de dignidade e justificação, do qual os indivíduos esperam eles mesmos participar” (Editora Unesp, p. 46).

Adorno, como a teoria crítica, costuma ser um diagnóstico do mal, uma teoria da dominação e da alienação. Às vezes cansa o diagnóstico como essa doença social crônica que vivemos. Walter Benjamin, que foi estrela um tanto solitária e errante, escreve sua contribuição num texto de nome Destino e Caráter; não seria inoportuno, para quem estiver com tempo, relacioná-lo com os conceitos políticos de virtú e fortuna em Maquiavel: momento oportuno e decisão. Costumo ler amadoramente os astros como algo desse embate entre destino e caráter, entre virtú e fortuna. Um antigo problema ontognosiológico e político de liberdade e necessidade, teológico de providência e arbítrio, e assim vamos, nas antinomias, dialéticas, paradoxos, oposições complementares.

Se for para indicar algo próximo do delírio: também não seria inoportuno ler as considerações de Ramatis (nas suas obras mediúnicas) sobre astrologia e planejamento sideral. Se for para retornarmos à teoria crítica, a epistemologia de Benjamin em seu livro sobre o drama barroco alemão é constelacional, para ele as nossas ideias se relacionam com as coisas como uma constelação com as estrelas: fragmentos de palavras montam-se, ainda que a anos-luz de distância umas das outras, ainda que tratem de imagens históricas separadas por séculos, como a um mosaico.

Por exemplo, no interior da arte, reencontram-se, na descontinuidade dos tempos, barroco, romantismo e surrealismo em seu descompasso de forma e conteúdo, estilo e modo de vida socialmente constituído: sua verdade encontrava-se para além da bela forma, para lá da harmonia, num solo social ele mesmo desarmônico, desencontrado, cindido. Por exemplo, no interior das lutas sociais, reencontram-se, no aqui e agora de um instante de perigo, a experiência de todos os que tombaram no passado, como se o anjo da história ainda esperasse “acordar os mortos e juntar os fragmentos”. Por exemplo, na astrologia: cinco pontos luminosos (estrelas/palavras) no céu montam para nós algo de semelhante a um caranguejo (imagem/figura) à qual damos um significado arquetípico (ideia) de um ser maternal numa fronteira psicológica entre terra e mar: mangue.

No documentário Cosmos, de Grasse Tysson trata a certa altura de homologia: o que está em cima corresponde ao que está em baixo. Faz isso para falar de como os primeiros agrupamentos nômades planejavam caças e migrações a partir do modo como repetições terrenas coincidiam com configurações/posições celestes. A noção de homologia é formulada pelos egípcios, entre a primeira e a segunda lei hermética; por Platão, homologia entre ser e pensamento, entre o que pensamos e o que se passa aí fora e nos é dado pelos sentidos; e assim poderíamos ir seguindo com exemplos.

Mas tudo isso é vão, suprema futilidade, fugacidade. Nós da cidade perdemos o céu. Ele não caiu sobre nossas cabeças, ele simplesmente tornou-se um imenso breu. O céu à noite para os habitantes da megalópole louca virou Tártaro. Ainda assim, cintilam ao longe alguns tímidos e luminosos pontos, e “Na vida”, diz-se, “Quem perde o telhado/ Em troca recebe as estrelas”.

 

 

 

 

 

 

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"

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