ESCRAVOS E VAQUEIROS POBRES: O ABRAÇO DOS EXCLUÍDOS

Cada sociedade tem a sua gênese (ou o seu jeito de nascer). A piauiense tem raízes no tripé: fazendeiros, escravos e vaqueiros. Ressalte-se, porém, que muitos latifundiários também lançavam os couros às costas, participavam das mesmas correrias e se lambuzavam na baba do mesmo boi…. Os seus descendentes ainda se querem herdeiros dessa casta de heróis.

A crônica de hoje tinge-se de uma cor local, mas não deixa de ser uma cena bem brasileira, considerando-se que a parte se insere no todo… Como brincou Gregório de Matos:

“O todo sem a parte não é todo,

A parte sem o todo não é parte…”

Vamos, pois, à cena e seu contexto:

O gado arisco preso nos currais era o fruto da peleja daquele dia… Solidários, os vaqueiros se ajudavam no desvestir-se da pesada indumentária de couro…. Os cavalos suados e batidos recebiam suas mochilas de milho.

Na sala central, a grande e farta mesa aguardava os homens para o repasto do dia… Em torno dela, cada comensal esmerava-se nos seus melhores modos… O anfitrião, Zeca Macedo, (meu pai); vaqueiro, entre os demais, procurava estabelecer uma aura de natural familiaridade… E logo todos se descontraíram nasemanações irresistíveis de seus pratos.

Porém, como na canção de Sérgio Bitencourt, “naquela mesa estava faltando ele”…exatamente o mais experiente e venerável do grupo… Meu pai, então, grita para o corredor:

_ Seu João, aproxime-se, homem!… Vamos comer, que a luta foi braba!…

E a voz que vem de lá é:

_ Eu como aqui mermo! Lugar de nego é na varanda!…

Minha mãe que o conhecia, desde menina, na fazenda do meu avô, já preparava o seu prato, pois sabia que ele jamais viria à mesa.

Evidente que nem todos ali eram brancos; porém nenhum, como ele, trazia o tom de pele e a pureza do sangue desembarcados de um navio imemorial.

Nos campos e na lida, havia uma sincera camaradagem: dividiam-se os arreios, emprestaram-se as montarias, bebia-se a água da mesma cabaça, picava-se o mesmo fumo…

_ Então, por que aquela reserva somente à mesa?…

A resposta só me vem nesta, (já citada por mim), “profecia de Joaquim Nabuco:

“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil.”

O velho João Pequeno trazia dos seus ancestrais, como se fora um preceito ético, que a mesa da casa grande, (que não era o nosso caso), constituía um território proibido aos negros.

E não era sem razão: lá pelos anos de 1910, cenas assim eram recorrentes: Cheguei a conhecer o velhíssimo Chico Preto. Ele contava, orgulhoso, esta proeza de seu patrão:

Chegaram ambos a uma fazenda… O seu chefe foi cortesmente convidado a almoçar; enquanto ele ficara escanteado no alpendre. Indignado, seu companheiro constrangeu o anfitrião:

_ “Em casa onde não come o meu vaqueiro eu também não como!”… Então, vieram os mil perdões à conta de um engano.

Se a história não nos confere certeza no futuro, pelo menos ajuda a compreender o presidente.

Demos, pois, um passo no passado: Na segunda metade do século XVII, o Piauí ainda era uma imensidão desconhecida. Aquela porção geográfica pairava nos limites mal definidos do maior latifúndio das Américas, quiçá do mundo, pertencente aos herdeiros de Garcia d’Ávila, trilhardário senhor da Casa da Torre, erigida por ele próprio, no litoral da Bahia.

Administrando as fazendas dos d’Ávilas, no Vale do São Francisco, estava um certo capataz português, chamado Domingos Afonso Mafrense. Aventureiro e, não menos ambicioso, ele estava sempre a esticar os olhos na direção de uma grande serra. Intuía que, para além dela, poderia haver favoráveis condições de prosperar o gado.

Recorreu à anuência e ao patrocínio de seus patrões, e se fizeram sócios na empreitada… Todos os frutos angariados seriam divididos ao meio…. Assim, nessa “tenebrosa transação”, como diria Chico Buarque, o Piauí virou propriedade da Casa da Torre e de Domingos Afonso Mafrense.

Parênteses, para amarrar as pontas:

(Garcia d’Ávila era um suposto filho do governador geral, Tomé de Sousa. Ele recebera do (suposto) pai, em termo de sesmaria, um generoso lote, no litoral da Bahia. Ali edificou um castelo em estilo medieval, a tal Casa da Torre, que metonimicamente passou a simbolizar o seu latifúndio de oitocentos mil quilômetros quadrados, em território nordestino).

Dito isso, voltemos à empreitada: acertado o negócio, Mafrense e seu irmão, Julião Afonso, reuniram comitiva e embrenharam-se, (40 léguas), até alcançarem as cabeceiras de um rio, que ele próprio batizou de rio Piauí, em função dos cardumes de piau. Nasceria daí o nome do próprio estado.

Os aventureiros passaram a mapear as fontes d’água: rios, lagoas e olhos d’água…. Abriram um carreirão para trazer o gado pé duro da Bahia e introduzir no Piauí… O resultado foi alvissareiro para a “indústria de quatro patas”. O Piauí, à época, reunia melhores condições do que, por exemplo, o Maranhão e o Pará. Na terra de Mafrense, não era necessário desmatar: havia a grama natural das várzeas de carnaúba e, nos chapadões, o cipó de tatu e a camaratuba estavam ao alcance da boca dos bichos.

Agora, era gerenciar o negócio: Domingos Afonso Sertão, como também ficou conhecido, situou suas próprias fazendas, mas a grande sacada foram as parcerias…

Ao longo dos rios, lagoas e olhos d’água, (de duas em duas léguas), criavam-se pequenos núcleos de fazenda: ele entregava um pequeno rebanho de matrizes e um reprodutor… disponibilizava 1 (ou raramente 2) escravos a um vaqueiro branco… E recebia os frutos à base de 4-1 ou de 5-1. Sendo 1 para o vaqueiro e os demais, para os d’Ávilas e Mafrense.

_ E como era a vida naqueles ermos?

Em 1697, o padre Miguel de Carvalho (ou Miguel do Couto), como também assinava, foi designado pelo bispo de Olinda para visitar o Piauí; providenciar uma capela e formar núcleos de catequese… Padre Miguel mapeou todas as fazendas existentes e fez um relato pungente das condições de vida dos vaqueiros e escravos:

Nada plantavam, porque não havia semente e ferramentas; não cozinhavam, porque não havia panelas. Alimentavam-se de lacticínios, carne bovina, mel e algumas frutas silvestres. E, por não haver tecido, vestiam roupa de couro…. Viviam em constante vigília, por receio de ataques de índios e de feras.

Nesse sentido, voltando àquela mesa, percebemos que o companheirismo e a cumplicidade têm raízes na própria sobrevivência.

No avançar do tempo, com a morte de Mafrense, em Salvador, (onde vivera nababescamente por muito tempo, mas deixando suas posses aos jesuítas), a Casa da Torre perdeu força. Os brancos começaram a construir casas, a organizar famílias… E foram deixando para trás aqueles tempos desditosos…. Os pretos continuaram escravos.

Contudo, houve quem lançasse mão nos melhores e maiores sítios…. Os mais vorazes e sagazes recorreram a toda sorte de expropriação: grilagem, pilhagem, falsificação de documentos…. Ratearam o descomunal latifúndio, em novos latifúndios, entre poucas famílias. Os patriarcas transformaram-se em coronéis, barões, marqueses… viraram nomes de ruas e cidades…. Seus descendentes, salvo exceções, foram os prefeitos, deputados, senadores, governadores, desembargadores…. Ainda, por muito tempo, os pretos continuaram escravos; os brancos e mestiços, expropriados, despossuídos, viraram agregados…

Dos índios resta o sangue a correr nas veias dos quase negros e dos quase brancos que povoam os morros e favelas…. Os que carregam as pedras dos edifícios, onde também não podem estar. São os “preguiçosos” que tudo constroem… Enfim, são os homens que se querem livres, mas alijados do banquete, como os seus ancestrais.

Gosto destes versos de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa:

“Eia todo o passado dentro do presidente!

Eia todo o futuro já dentro de nós!”

Ninguém escreve a história do futuro, como se propôs o padre Antônio Vieira. Nele, as possíveis intervenções só se dão pelo presente… O homem preto, escanteado no alpendre; o outro acanhado, sem reunir emocionais de sentar à mesa com os colegas são, de fato, eventos traumatizantes que transmitem, na forma de metonímia, uma mensagem tácita aos nossos dias, como se dissesse:

_ “Cuidado, não podemos mudar, amanhã, o que normalizamos, hoje!”

Não normalizar deve ser a regra. Por isso, deposito uma esperança na atitude destes jovens, nos corredores das universidades, de Black Power, de rastafári ou como melhor cair… Desassombrados, vão em busca da parte que lhes “cabe neste latifúndio”… pois daquele, (o da Casa da Torre), o muito que coube aos seus antepassados foram os sete palmos, destinados aos que viveram e morreram “severinamente”, como os “Severinos” de João Cabral de Melo Neto.

Estimo que se tenha o mesmo espírito de cooperação e camaradagem dos homens que traziam os bois selvagens aos currais, dos que se protegiam das feras, no meio do nada…, mas que não se permitam declinar do seu lugar à mesa!

Ao meu irmão, Ismar Macedo, e meu pai, Zeca Macedo, personagens vivos dessa saga.

Teresina, 22 de agosto de 2024

   Macedo

 

Foto: Ismar Macedo e Zeca Macedo, homenageados na festa do Vaqueiro.

Francisco das Chagas Oliveira Macedo

Francisco das Chagas Oliveira Macedo (Prof. Macedo) nasceu em Picos, sertão do Piauí, em 1960. Graduado em Letras pela UFPI, leciona língua portuguesa e literatura, nas redes pública e privada, em Teresina.