“Quando secam os oásis utópicos estende-se um deserto de banalidades e perplexidades”.
Jürgen Habermas.
No campo do pensamento político pós-Guerra Fria vem se fortalecendo a percepção de que os sistemas eleitorais viraram um dispositivo de normatização da disputa do poder pelo poder, o que pode refletir uma adesão generalizada à ideia do fim da história e, como corolário, do fim do sujeito político enquanto agente de transformação sistêmica. Pode, também, ser um indicador do neoliberalismo como única e nova razão do mundo.
Em setembro de 1987, a revista Novos Estudos, editada pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), publicou um artigo de Jürgen Habermas denominado “A nova intransparência”, no qual ele trata da crise do Estado de bem-estar social e do esgotamento das energias utópicas. Em suas reflexões, marcadas por um negativismo em relação ao futuro da humanidade, afirma que “[…] quando secam os oásis utópicos estende-se um deserto de banalidades e perplexidades”. Para os que ainda teimam em se conduzir por um horizonte de futuro emancipatório, para os que se colocam contra a corrente, para os que acreditam numa nova direção política e moral para o país, o comportamento do PT e de Lula, diante do cenário político brasileiro, representa um deserto de banalidades na construção de um jogo político de disputa do poder pelo poder.
A passagem do Lula por Fortaleza, entre os dias 20 a 23 de agosto, produziu um mar de perplexidades diante da total ausência de discussão de ideias para solucionar a crise política, econômica e institucional brasileira, colocando o país em outro horizonte de futuro. Lula se apresenta, ele próprio, a sua pessoa, como a única salvação para o país no momento. A população não é convidada a participar, não sendo, portanto, estimulada a se organizar para fazer as rupturas inerentes às mudanças do Brasil moderno, capitalista dependente, eurocêntrico, cristão, branco, patriarcal, heteronormativo, machista e com um projeto neoliberal rentista e extrativista. Lula se recusa, como se recusou quando foi presidente do Brasil por dois mandatos, a falar em rupturas estruturais com o sistema.
O PT e o Lula se colocam como uma opção de conciliação nacional diante dos ataques à democracia. Todavia, se for verdade, ou se pelo menos for possível entender que o governo de Bolsonaro é a continuação do golpe de 2016, podemos imaginar que não vivemos numa democracia e que Bolsonaro tenta prolongar o golpe por outros meios diante de uma crise institucional que incapacitou o Estado de Direito de responder tolhendo e punindo, exemplarmente, os constantes ataques ao que sobrou da frágil democracia formal.
Uma das perplexidades é Lula fazer um movimento de conciliação nacional com os que patrocinaram o golpe, com os que apoiaram Bolsonaro e com os que querem se livrar do mesmo para poderem continuar dominando e explorando a maioria do povo e das riquezas deste país. Lula capta bem o sentimento dos que estão apavorados com o governo fascista realizado por Bolsonaro e seus apoiadores: “[…] qualquer um é melhor do que essa coisa”. Mas é também nesse sentimento que aposta o seu adversário Ciro Gomes, que aposta no bordão “nem Lula, nem Bolsonaro”.
Lula sabe que a tal “terceira via”, em reposta aos interesses de setores do capital, é ele na sua disposição de se recolar, como fez com a “carta ao povo brasileiro”, a serviço dos interesses do capital por meio de um pacto conservador de conciliação nacional. O ex-presidente petista sabe que não conseguirá repetir o pacto conservador neoliberal com inclusão provisória de setores pobres da sociedade no mercado consumidor e em um conjunto importante de políticas públicas estatais realizadas quando foi presidente, mas sabe que qualquer coisa que faça será melhor do que as situações a que os golpistas levaram o país.
A condição para que ele volte à presidência da república é ser o que ele é: um homem carismático, inteligente, astuto, experiente e que tem aversão a rupturas. Sua proposta será um pacto em torno da garantia da chamada democracia liberal ou das regras do jogo que garantam ao capital seguir no seu processo contínuo de acumulação de riquezas, produzindo miseráveis e barbárie por todo o planeta. Esse pacto inclui a liberdade para que sua ação de governo combata a agenda de costumes bolsonaristas.
A aversão de Lula a rupturas pode, em parte, explicar por que diante de uma situação privilegiada para fazer um acerto de contas com ex-aliados, que se tornaram mais do que opositores, tornaram-se inimigos, ele se coloque como conciliador, como alguém que coloca os interesses do país acima dos seus. A situação no Ceará é um bom exemplo. O Ceará é um estado governado por um “petista” cujo mandato é bem avaliado pela população, num território que é berço do seu concorrente à presidência e no qual o governador tem condições de fazer o sucessor e ser eleito senador, dando um palanque próprio e amplo apoio para a candidatura de Lula, mas que prefere fazer aliança com a família Gomes, e tem o apoio de Lula.
Camilo Santana, governador do Ceará, que usa a legenda do PT sempre se comportou como um militante plantado pela família Gomes no partido, numa estratégia de guerra de posição, mas dentro do partido os que produzem lamúrias nunca tentaram expulsá-lo, sempre o pouparam e carrearam suas críticas para o seu testa de ferro dentro do PT, o deputado José Guimarães, que tem se esforçado para manter o controle da máquina partidária e utilizar a maioria nas instâncias partidárias para apoiar dentro do PT os interesses dos Ferreira Gomes e os seus.
No caso do Ceará, seria normal que o PT, juntamente com o seu governador, conduzisse o processo sucessório, mas passou a ser levado a reboque e de forma humilhante pelo patriarcado do Gomes. O senador Cid Gomes – que ao se eleger senador prometeu criar um bloco antipetista nacional para mudar o país, mas que acabou fazendo um mandato medíocre e apagado –, em relação à sucessão no Ceará, disse: “[…] espero e torço, independente de divergências no plano nacional, que estejamos juntos aqui no Ceará. Se a gente mantiver a aliança no Ceará, fica mais fácil o apoio ao Camilo” (Jornal O Povo, página 2, 23/08/2021). Fica bem claro quem está conduzindo o processo sucessório, quem determina as condições para o apoio à candidatura de Camilo ao Senado, quem será o candidato ao governo e as regras do jogo.
A candidatura do PDT (Roberto Cláudio, Mauro Filho ou Cid Gomes) ao governo pode ser tudo o que deseja o bolsonarista Capitão Wagner, pois com qualquer um deles ele polariza levando vantagem maior do que se tivesse que enfrentar um candidato do PT, como José Airton, apoiado pelo governo Camilo. Com um candidato do PDT ao governo, apoiado por Camilo, mas fazendo campanha de Ciro Gomes para presidente e batendo no Lula, a militância petista vai ficar desorientada, o que facilitará para o Capitão Wagner. Por outro lado, com as bênçãos de Lula, Eunício Oliveira (MDB), além de apoiar a presidência petista, vai fazer campanha para o Capitão Wagner. Como embarcou de vez na cultura da velha política, o PT já não poderá usar, em relação aos seus adversários, o bordão de quando ele se colocava como o guardião da ética na política: “é tudo farinha do mesmo saco”. E se Camilo, ainda, fizer corpo mole no apoio à candidatura de Lula ou for fazer campanha para Ciro, a confusão no comando da campanha será desnorteadora.
Lula não terá palanque por parte do candidato do PDT, que será apoiado por Camilo em troca do apoio para a sua candidatura ao Senado. Camilo terá duplo palanque: dos Gomes e do PT. Portanto, ao não fazer uma ruptura com os Gomes, o que seria apoiado também por Lula, gerando uma condição mais confortável para o PT, o atual governador do Ceará acaba encurralando o partido e boqueteando o PDT. Essa situação pode se tornar, ainda, mais inusitada se durante a campanha presidencial, no primeiro turno, configurar-se uma situação em que, depois de bater muito no Lula, Ciro Gomes ultrapassar Bolsonaro e ir para o segundo turno com o Lula, o que pode gerar uma crise em meio à campanha no Ceará. Será mesmo que Camilo Santana precisa do apoio dos Gomes para se eleger senador ou ele está encurralando o partido para depois sair da legenda?
Toda essa onda de banalidades e perplexidade, que alimenta a disputa do poder pelo poder, revela a falta de horizonte de futuro emancipatório por parte de Lula e do PT, revela a adesão da esquerda à ideologia do fim da história. O PT claramente é um partido que esgotou a capacidade de inovação na gestão do capitalismo, o modo petista de governar é o da velha política. O Lula é a velha política, que, de imediato, impõe-se como melhor opção, porque estamos numa situação política esdrúxula, em que qualquer outro é melhor do que Bolsonaro. Nesse cenário, de disputa entre opções da velha política, Lula é um candidato encantador. Como diz Maquiavel, na disputa do poder é preciso sorte, e mais uma vez a sorte sopra na vida de Lula, ele sabe disso e não vai querer perder essa oportunidade.