ENCONTROS MARCADOS NAS PÁGINAS DE UM LIVRO

Visitando a biblioteca de um amigo, Osvaldo Araújo, e tendo obtido sua autorização para levar emprestado qualquer de seus livros, comecei com entusiasmo meu garimpo. Fui imediatamente atraída pela estante de escritores cearenses, muitos dos quais eu desconhecia ou ainda não havia lido. Fui separando, sem hesitação, aqueles que atiçavam minha curiosidade. Alguns clássicos eu já tinha lido, como Adolfo Caminha, Antônio Sales, José de Alencar, Oliveira Paiva, Raquel de Queiroz…

 

Outros me despertaram interesse, e comecei a fazer uma pilha que, sem cerimônia, levaria para minha casa. Lá estavam Ana Miranda, Carlos Dantas, Alder Teixeira, Paulo Elpídio, Dimas Macedo, Dora de Paula, o próprio Osvaldo Araújo, Clauder Arcanjo e tantos outros.

 

O primeiro que escolhi para ler foi “Confidências Literárias” de Clauder Arcanjo, e é o encontro com esse livro que quero compartilhar aqui.

Uma surpresa durante a leitura foi perceber que Osvaldo, o proprietário do livro, tinha o hábito de sublinhar, com caneta preta, passagens e frases que provavelmente lhe tocaram, imagino. Minha leitura, então, transformou-se numa experiência dupla: a escrita de Clauder e os grifos de Osvaldo. Enquanto lia as frases sublinhadas por ele, não pude deixar de pensar em como essas marcas são, na verdade, ecos de sua própria identidade. Ao sublinhar certos trechos, Osvaldo não apenas destacava o que o tocou, mas também revelava um pouco de si mesmo, de suas inquietações e reflexões. Essa interação entre leitor e texto cria um diálogo silencioso que ultrapassa a obra em si, nos fazendo refletir sobre como, ao absorver as palavras de grandes autores, também absorvemos parte de suas visões, incorporando-as à nossa própria maneira de enxergar o mundo. Cada leitura, então, não apenas nos transforma, mas revela quem somos no processo. Ao ver uma frase ou trecho sublinhado, já me pegava refletindo sobre como aquele outro leitor, que não eu, reagiu à leitura.

 

Clauder, o personagem principal dessa experiência, nos leva para um universo literário lúdico — uma reunião de confidências dele com mentes brilhantes. Gente que nos encanta, perturba e, ao mesmo tempo, nos equilibra e desequilibra. Mergulhei nesse mundo com ansiedade e curiosidade.

Aos poucos, Clauder nos envolve em encontros surpreendentes, e um deles é com ninguém menos que Clarice Lispector. Ela e Clauder, em suas confidências, despertaram uma inquietação profunda, abriram portas para dimensões internas, aquelas que evitamos explorar. O silêncio de Clarice preenchia os espaços, e suas elipses sussurravam mais do que qualquer frase completa poderia dizer.

Cada palavra parecia conter um abismo, um convite para desbravar as profundezas de nossa existência. Clarice não nos guiava; ela apenas acendia a lâmpada e deixava que enfrentássemos nossos próprios reflexos. Pelas frases sublinhadas por Osvaldo, percebi que ele também se inquietou: “o inumano é o melhor nosso”, um eco de sua presença transformadora. Mais do que literatura, Clarice nos fazia sentir que ler e escrever eram formas de confrontar nossas próprias loucuras e de nos reconciliarmos com o que há de mais humano — e inumano — em nós.

 

Com os sentimentos ainda em ebulição e sem dar tempo para uma trégua, Clauder faz entrar em cena Fernando Pessoa, trazendo consigo o peso dos dilemas existenciais e a complexidade de seus heterônimos. Pessoa não chega de forma simples; ele se apresenta como um confidente das inquietações mais profundas, aquele que compreende o Nada em sua forma mais crua e, ao mesmo tempo, reconhece as aspirações mais elevadas da alma humana. Surge como quem, sem pressa, nos convida a uma conversa longa e silenciosa sobre os mistérios do existir.

 

Ao lado de Clauder, compartilha a visão desconcertante de que ‘há metafísica bastante em não pensar em nada’, transformando o vazio em uma presença quase palpável. Mas o seu ‘não pensar’ não é uma fuga; é uma reflexão velada sobre o ser, o que está além do visível e do dito, expandindo o campo de diálogo já saturado de questionamentos sobre o tempo e a existência. Pessoa, com sua calma inquieta e seus pensamentos ecoando no silêncio, ressoa dentro de nós como aquele que sabe que, muitas vezes, é o próprio silêncio que guarda as respostas mais profundas.

 

Logo depois, Cecília Meireles adentra o cenário, envolta em sua voz lírica e contemplativa, como se cada palavra sua fosse um cochicho da alma. Cecília, com a sabedoria poética de quem aprendeu a ver beleza na dor e nas sombras, une-se ao diálogo de maneira quase etérea, mas com um peso emocional que imediatamente transforma a conversa. Nas confidências com Cecília, Clauder nos faz recordar que, em meio às agruras e tragédias da vida, é a poesia que tem o poder singular de abalar o espírito e, ao mesmo tempo, fazer renascer aquilo que parecia perdido. Cecília traz consigo o eco da fragilidade humana diante das grandes ambições e ilusões, reforçada na passagem sublinhada por Osvaldo: ‘Que a sede de ouro é sem cura, e, por ela subjugados, os homens matam-se e morrem, ficam mortos, mas não fartos.’

 

A presença de Cecília adiciona ao encontro uma perspectiva ainda mais sutil e, ao mesmo tempo, cortante. Seu olhar poético, carregado de uma melancolia serena, lança luz sobre as perguntas silenciosas que os outros personagens talvez não tivessem ousado formular: o que realmente permanece quando tudo o mais se desfaz? O que sobrevive ao desgaste do tempo e ao peso das escolhas humanas? Sua chegada provoca em Clauder uma nova camada de diálogo, onde a dor e a beleza se entrelaçam de forma inexorável, como se a condenação e o renascimento fossem faces inseparáveis da mesma moeda.

 

Cercada por Clauder, Clarice, Pessoa, Cecília e Osvaldo, com o corpo e a mente agitados por tanto pensamento profundo, anseio por uma trégua. Eu queria humor, leveza, uma inteligência espirituosa que trouxesse alívio.

 

Clauder, como se adivinhasse meu desejo, convoca Mario Quintana que chega como um pássaro clandestino embalado pelo vento da pureza. Somos então banhados pelo azul de suas palavras e acalentados por serenatas celestiais.

 

Seus versos, mesmo diante das mais sombrias reflexões, trazem o conforto de uma alma que se expressa pela simplicidade. Quem mais, senão ele, poderia transformar as dores humanas em pequenos aforismos de esperança e melancolia? Na ausência da poesia, não há salvação.

 

Enquanto Quintana nos conduz pela mão, seguimos flutuando em suas metáforas, deslizando entre as estrelas que ele tanto menciona, com aquela leveza que só um poeta íntimo da tristeza poderia ter.

Osvaldo sublinha: “Se as coisas são inatingíveis… Ora! Não é motivo para não querê-las…”

E me pego falando com o poeta:

Mario, o menino que habita em ti, vive em cada palavra tua. A tua poesia é o antídoto para os pesos do mundo. Preparas o chá para os fantasmas, e nós, absortos, te escutamos. Lá fora, o mundo continua a girar, mas dentro dos teus versos, Quintana, o tempo cessa. Em tua companhia, há uma paz rara, como um abrigo dentro da própria alma.

 

 

Agora, como leitora, encontro também a minha própria voz ecoando nessas páginas. A maestria de Clauder Arcanjo possibilitou esse encontro de pensamentos e sensibilidades, guiando-nos pelas palavras, e nos convidando a refletir profundamente sobre o que é viver, amar e criar, transformando cada página em uma janela para o infinito.

 

 

(Foto Cecília Meireles-Templo Cultural)

Monica Moreira da Rocha

Economista, servidora pública aposentada, ex-auditora da Receita Federal do Brasil.