Foi noticiado nesta terceira semana de setembro de 2023, por ocasião da reunião realizada entre os presidentes do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e dos Estados Unidos da América, Joseph Robinette “Joe” Biden Jr., que ambos lançaram uma proposta “civilizatória” para o emprego.
Justo e digno! Aliás, posição justa e séria desde a promulgação da Encíclica Rerum Novarum pelo Papa católico Leão XIII, em 1891. Na verdade, justíssima e honradíssima posição desde quando o assim chamado Capitão Ludd e seus seguidores, mulheres, homens e crianças quebravam máquinas no alvorecer do capitalismo industrial. Isso para ficarmos dentro dos quadros do capitalismo, claro…
Ou seja, a denúncia da precariedade do trabalho e do aviltamento dos salários não é nova, ainda que honrada, porque é parte constitutiva da própria história do capitalismo, em sua longa história desde seus primórdios. Não se pretende aqui, então, recuperar os esforços de compreensão da crítica ao capitalismo dos salários, que transforma o emprego de homens em meio de obter a tão especial mercadoria força de trabalho.
Se há alguma novidade na parceria extraída do encontro Lula-Biden é a de que é uma iniciativa politicamente importante, uma vez que afeta qualquer pessoa que vive a partir da venda da sua força de trabalho – e isto é muita gente.
O compromisso assumido de defender os interesses de trabalhadores e trabalhadoras, hoje, definindo como cerne desta defesa o sindicalismo, busca promover o emprego decente e de qualidade.
Desde as primeiras manifestações operárias e proletárias, militantes e intelectuais anarquistas, socialistas e comunistas de toda ordem criaram formas de organização coletiva que foram fundamentais para limitar a extensão da exploração do trabalho. Sem o sindicalismo, em suas diversas matizes, decerto a vida de cada um e uma que vive sob o domínio do capital seria muitas vezes pior do que é. Neste sentido, viva a defesa do sindicalismo!
Historicamente, porém, o caminho dos movimentos sociais, abarcando o sindical, acabou dividido. Ao menos teoricamente, foram tomados dois rumos distintos: o da ruptura com a ordem do capital e o da organização do capitalismo sob certo manto civilizatório. Esta segunda vertente incluiu a adesão mais ou menos crítica ao Estado e suas políticas, especialmente aquelas voltadas para o emprego.
Nessa senda, a promoção da melhoria das condições da vida da imensa maioria da sociedade humana, que depende do seu próprio trabalho, deve ser realizada no marco da relação capital-trabalho. É exatamente esta relação que produz a indignidade da vida, a precariedade da existência, a pobreza da reprodução material e simbólica humana, a desesperança – enfim, aquilo que caracteriza a chamada civilização capitalista. Civilização que, presentemente, tem fortunas de pelo menos um bilhão de dólares sob controle de 2.640 indivíduos, segundo a Forbes.
Como um todo, os bilionários do planeta detinham US$ 12,2 trilhões em abril de 2023. Os Estados Unidos contribuem com quase 28% deste número, cabendo ao Brasil a modestíssima oferta de quase 2% do total de biliardários do planeta. Estamos falando, neste caso, de menos do que 0,1% das pessoas que vivem (de alguma forma) neste mundo. Segundo a OXFAM, se for considerado o 1% dos mais ricos, eles detém quase dois terços de toda riqueza gerada desde 2020 – quase US$ 42 trilhões, seis vezes mais dinheiro que 90% da população global conseguiu “juntar” no mesmo período.
Qual civilização é essa? Nos Estados Unidos, é a que mantém uma diferença salarial entre executivos chefe (os famosos CEO) e trabalhadores que chega a ser de 603 para 1 – como indicam os dados de cem empresas com os salários médios mais baixos em 2022 listadas pelo indíce Standard & Poor’s 500. Nestas 100 empresas, os executivos-chefes receberam US$ 15,3 milhões em média em 2022, enquanto o salário médio dos trabalhadores foi de US$ 31.672 no ano.
É a mesma civilização que, no Brasil, criou condições para que 3.390 indivíduos (os mais ricos do país) detivessem 16% de toda a riqueza, mais do que 85% da população brasileira (182 milhões de pessoas) neste ano.
Não é uma queixa, e ela nem é moral. São os resultados da dinâmica da acumulação capitalista. O mesmo movimento que gera empregos precários e a indignidade da vida.
Então, se não é para estrumbicar, a defesa do trabalho digno e do fortalecimento sindical feita por Lula e Biden tem que apontar não só o objeto teórico-político sobre o qual estão falando, mas, como conseguir fazer isso dentro da ordem capitalista.
A chamada “Parceria pelos Direitos dos Trabalhadores e Trabalhadoras”, por eles lançadas neste encontro, é louvável ao propor que os ganhos na forma de lucro sejam usados para pagar salários mais altos e para que os pobres “subam na vida”… Contudo, se mudar de posição social é uma possibilidade teórica e retórica, como fazê-lo se o “moinho satânico” reduz permanentemente as capacidades de quem não ocupa as posições de mando privilegiadas?
Talvez não seja por outra razão que, no mesmo país de Joe Biden, 88% dos norteamericanos com menos de 30 anos aprovam sindicatos e 90% apoiam greves, conforme dados de uma pesquisa encomendada pela Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais (AFL-CIO), a maior central operária dos Estados Unidos e do Canadá.
E talvez seja a mesma motivação que, contraditoriamente, no país de Lula da Silva a taxa nacional de sindicalização caiu para 11,2% em 2019 e o número de greves declinou para menos de 600 em 2019 (tendo sido em torno de 4 mil ao ano no final dos anos 1980).
Assim, se a iniciativa conjunta Brasil-USA é correta e reta, a ênfase na colaboração entre governos, centrais sindicais e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), atores da chamada “Parceria”, para o desenvolvimento de ações que promovam o desenvolvimento inclusivo, sustentável e “compartilhado com trabalhadores e trabalhadoras” é apenas uma parte da solução para um estado de coisas que exige saídas radicais.
Não basta, pois, seguir o protocolo dos Objetivos do Milênio, argumentando que os governos devem se empenhar mais, sobretudo para ampliar oportunidades para que trabalhadores e trabalhadoras se capacitem para defender seus direitos. Não basta dizer que a transição energética é uma oportunidade de bons empregos.
São metas úteis, pode-se dizer. Porém, não mudam as causas que vem provocando a degradação do trabalho. E não há qualquer garantia que mudarão, inclusive, o perfil do emprego.
Nos quase cem anos de história recente do Brasil, desde a afirmação do “pai dos pobres” no comando do governo nacional, o capitalismo brasileiro se “modernizou”, o conservadorismo adaptou-se, muitos milhares mudaram de posição social e muitos milhões permanecem à margem.
No século XXI, dois elementos particularmente importantes ajudam a explicar o quadro da miséria (inclusive a intelectual) reinante: o neodesenvolvimentismo e as reformas trabalhistas de corte reacionário. Eles não são as cerejas do bolo ou o fim de linha da história. Nem apenas coroam o ataque aos direitos do emprego. Talvez seja melhor caracterizá-los como condições políticas para piorar o que já é ruim, conforme diz o vulgo.
O que fazer, diante disso? O ataque que assistimos é do capital contra o trabalho. Não contra o emprego. O emprego pode ser transferido para máquinas, isto é, para o trabalho que morre e se cristaliza, segundo disse o barbudo de Trier.
O Estado, nesse momento e desde sempre, atua a favor do capital. Mesmo quando se propõe a criar competências, inclusive no marco da atuação sindical. Observando as políticas públicas de geração de emprego no Brasil no presente século, veremos isso. Elas beiram o fiasco, por não incorporarem experiências autogestionárias, solidárias e descentradas da dinâmica da competição e produtividade capitalistas.
Fundamentais para a reprodução de pessoas que vendem sua força de trabalho, estratégias de aumento salarial não alteram o papel dos sujeitos na produção de uma vida boa. Mesmo que possam dar uma boa vida, pautada pelo consumo, produzem e reproduzem infelicidades – o que é próprio de um mundo fetichizado, espetacularizado.
Garantir a dignidade do trabalho é fundamental para cuidar do emprego e de quem pode prove-lo a partir da sua existência. Talvez, contudo, não seja o suficiente. Mais urgente é construir políticas que reduzam a dependência e coloquem os sujeitos do trabalho no centro do processo decisório, por meio de outras formas de educação – e não só de formação.