PRÉ-ATOS
Segundo um dos ícones da dramaturgia brasileira, o pernambucano Nelson Rodrigues, “Em Brasília, todos são inocentes e todos são cúmplices”¹.
ATO I (LANGUIDEZ)
Eis que a esperança no porvir se esvanece… Então, eu estremeço!
(…)
E, no dulcificante cansaço do corpo, a alma sempre irrequieta,
ora embevecida, descansa, repousa, embora ainda desperta.
No desejo trivial, demasiadamente humano, do insaciável ser,
o idílico sonho recorrente revela aquilo que me é capaz de fazer.
Lá fora, a fria e monocórdica chuva insiste em aguar o mundo,
sem lhe impingir cobranças, sem lhe exigir quaisquer fundos.
Enquanto, no telhado inânime, a vida líquida se esvai, ressoa,
e, em pleno desencantamento, pela biqueira doméstica escoa.
(…)
E eu, nos braços do deus grego Hypnos, aquieto-me, adormeço…
[ENTREATO COM ORQUESTRAÇÕES:
“– A política é a arte de acreditar desacreditando, segundo o jurista Rui Barbosa.
– E o Rui Barbosa disse isso?
– Se não disse, deveria ter dito.”
(Colóquio mormentemente sigilento entre Odorico Paraguaçu, o corrupto, demagogo e folclórico prefeito de Sucupira, e Dirceu Borboleta, seu fiel e desastrado secretário particular, em O bem-amado, do dramaturgo Dias Gomes).
E a criatura, para proteger o criador, nomeia-o seu primeiro-ministro. Um honorável membro da Suprema Corte, arrimado em robusto arrazoado, prenhe de juridicidade, lógica e bom senso, como sói acontecer, entende justo desqualificar o ato. E fica o dito por não-dito.
E o Mutá Sussema, versão estilizada do Salvador da Pátria, para proteger o bom velhinho, de codinome Angorá para os executivos delatores, cria um ministério especial para ser todo dele. O decano da Suprema Corte, arrimado em robusto arrazoado, prenhe de juridicidade, lógica e bom senso, como sói acontecer, entende justo legitimar o ato. E o dito se faz dito.
E o estrategista que herdou obliquamente o trono, para impressionar seus súditos – que nele votaram ou não –, promete só indicar o futuro ocupante do cargo vago na Suprema Corte após a escolha do substituto na relatoria da explosiva Lava Jato. Cumprido tal formalismo, eis que unge o atabalhoado amigo dos amigos que logo aceita participar, com alguns deles, de insólito convescote – avant-première da sabatina?! –, à base de massas, vinhos e figos, a bordo da chalana Champagne, que desliza suavemente sobre as cristalinas e remansosas águas do Paranoá. Onde a estratégia? Ora, será ele o revisor de tudo que, da lavra do relator, merecer a apreciação do colegiado supremo. Entendeu, ó pacato brasileiro?! E outro dito também se faz dito.
Pois é. Convenhamos, por ser inequívoco: cabe razão ao Odorico. Rui bem que deveria ter dito. E, se não disse… ficou o não-dito por dito.
Rememoremos Medici: “Eu posso. Eu tenho o AI-5 nas mãos e, com ele, posso tudo”². E pôde.
Tenho dito: NÃO!].
ATO II (ALTIVEZ)
Se me frustram?!
Não me prostro…
A isso não me presto!
Se me adestram?!
Sucumbem.
Invalidam-se.
Impressionam-se.
Sou ambidestro!
Jamais requesto!
Nem me encabresto…
Se me atraiçoam?!
Embriagaram-me…
Entorpeceram-me…
Acovardaram-se!
Embora jamais me prostituam!
Sigo incólume.
Camaleono-me, se preciso.
Reinvento-me, sempre!
E, como a velha águia,
Rejuvenesço para novos voos.
E, como a lendária fênix,
Renascinzo-me imortal.
Até!
PÓS-ATOS:
Se, na concepção pessoana, “Vivemos um entreacto com orquestra”³, a política nacional, em todos os níveis e com todas as cores e sob os mais diversos padrões, refestela-se em refrigerados anfiteatros com orquestrações de toda ordem e sob a regência perversa de escusas parcerias público-privadas. Ao populacho, as reformas! À patuleia, a fatura!
Persevero com Millôr: Que país é este?4
Convém, pois, sugerir aos sempre combativos manifestantes – os quais invejo! – que evitem, doravante, reeditar o desperdício do “Fora Dilma!” com a versão pouco criativa, com sabor de vindita, do “Fora Temer!”. Sejam mais representativos: adotem o “Fora Todos!”.
Post scriptum: ¹ Há quem prefira a versão atualizada da frase do “anjo pornográfico” – por ele mesmo –, ou seja, “Em Brasília, não há inocentes; todos são cúmplices”. ² Para a frase de Medici, Elio Gaspari em As ilusões armadas – A ditadura escancarada (São Paulo: Companhia das Letras, 2002; págs. 129-130). ³ Para a frase de Fernando Pessoa, Livro do desassossego (São Paulo: Companhia das Letras, 2006; pág. 114). 4 Título de livro de Millôr Fernandes (São Paulo: Círculo do Livro, 1978), cujas crônicas e ilustrações refletem a realidade do Brasil que conhecemos.