Em dois atos, por Francisco Luciano Moreira Gonçalves (Xykolu)

PRÉ-ATOS

Segundo um dos ícones da dramaturgia brasileira, o pernambucano Nelson Rodrigues, “Em Brasília, todos são inocentes e todos são cúmplices”¹.

ATO I (LANGUIDEZ)

Eis que a esperança no porvir se esvanece… Então, eu estremeço!

(…)

E, no dulcificante cansaço do corpo, a alma sempre irrequieta,

ora embevecida, descansa, repousa, embora ainda desperta.

No desejo trivial, demasiadamente humano, do insaciável ser,

o idílico sonho recorrente revela aquilo que me é capaz de fazer.

Lá fora, a fria e monocórdica chuva insiste em aguar o mundo,

sem lhe impingir cobranças, sem lhe exigir quaisquer fundos.

Enquanto, no telhado inânime, a vida líquida se esvai, ressoa,

e, em pleno desencantamento, pela biqueira doméstica escoa.

(…)

E eu, nos braços do deus grego Hypnos, aquieto-me, adormeço…

[ENTREATO COM ORQUESTRAÇÕES:

“– A política é a arte de acreditar desacreditando, segundo o jurista Rui Barbosa.

E o Rui Barbosa disse isso?

Se não disse, deveria ter dito.”

(Colóquio mormentemente sigilento entre Odorico Paraguaçu, o corrupto, demagogo e folclórico prefeito de Sucupira, e Dirceu Borboleta, seu fiel e desastrado secretário particular, em O bem-amado, do dramaturgo Dias Gomes).

E a criatura, para proteger o criador, nomeia-o seu primeiro-ministro. Um honorável membro da Suprema Corte, arrimado em robusto arrazoado, prenhe de juridicidade, lógica e bom senso, como sói acontecer, entende justo desqualificar o ato. E fica o dito por não-dito.

E o Mutá Sussema, versão estilizada do Salvador da Pátria, para proteger o bom velhinho, de codinome Angorá para os executivos delatores, cria um ministério especial para ser todo dele. O decano da Suprema Corte, arrimado em robusto arrazoado, prenhe de juridicidade, lógica e bom senso, como sói acontecer, entende justo legitimar o ato. E o dito se faz dito.

E o estrategista que herdou obliquamente o trono, para impressionar seus súditos – que nele votaram ou não –, promete só indicar o futuro ocupante do cargo vago na Suprema Corte após a escolha do substituto na relatoria da explosiva Lava Jato. Cumprido tal formalismo, eis que unge o atabalhoado amigo dos amigos que logo aceita participar, com alguns deles, de insólito convescote – avant-première da sabatina?! –, à base de massas, vinhos e figos, a bordo da chalana Champagne, que desliza suavemente sobre as cristalinas e remansosas águas do Paranoá. Onde a estratégia? Ora, será ele o revisor de tudo que, da lavra do relator, merecer a apreciação do colegiado supremo. Entendeu, ó pacato brasileiro?! E outro dito também se faz dito.

Pois é. Convenhamos, por ser inequívoco: cabe razão ao Odorico. Rui bem que deveria ter dito. E, se não disse… ficou o não-dito por dito.

Rememoremos Medici: “Eu posso. Eu tenho o AI-5 nas mãos e, com ele, posso tudo”². E pôde.

Tenho dito: NÃO!].

ATO II (ALTIVEZ)

Se me frustram?!

Não me prostro…

A isso não me presto!

Se me adestram?!

Sucumbem.

Invalidam-se.

Impressionam-se.

Sou ambidestro!

Jamais requesto!

Nem me encabresto…

Se me atraiçoam?!

Embriagaram-me…

Entorpeceram-me…

Acovardaram-se!

Embora jamais me prostituam!

Sigo incólume.

Camaleono-me, se preciso.

Reinvento-me, sempre!

E, como a velha águia,

Rejuvenesço para novos voos.

E, como a lendária fênix,

Renascinzo-me imortal.

Até!

PÓS-ATOS:

Se, na concepção pessoana, “Vivemos um entreacto com orquestra”³, a política nacional, em todos os níveis e com todas as cores e sob os mais diversos padrões, refestela-se em refrigerados anfiteatros com orquestrações de toda ordem e sob a regência perversa de escusas parcerias público-privadas. Ao populacho, as reformas! À patuleia, a fatura!

Persevero com Millôr: Que país é este?4

Convém, pois, sugerir aos sempre combativos manifestantes – os quais invejo! – que evitem, doravante, reeditar o desperdício do “Fora Dilma!” com a versão pouco criativa, com sabor de vindita, do “Fora Temer!”. Sejam mais representativos: adotem o “Fora Todos!”.

Post scriptum: ¹ Há quem prefira a versão atualizada da frase do “anjo pornográfico” – por ele mesmo –, ou seja, “Em Brasília, não há inocentes; todos são cúmplices”. ² Para a frase de Medici, Elio Gaspari em As ilusões armadas – A ditadura escancarada (São Paulo: Companhia das Letras, 2002; págs. 129-130). ³ Para a frase de Fernando Pessoa, Livro do desassossego (São Paulo: Companhia das Letras, 2006; pág. 114). 4 Título de livro de Millôr Fernandes (São Paulo: Círculo do Livro, 1978), cujas crônicas e ilustrações refletem a realidade do Brasil que conhecemos.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.