Poderia continuar comentando a cena recifense, comparando-a com a nossa. Poderia mesmo lembrar de uma cena em que Siba, cantando em algum evento de Fortaleza (num ano que não me lembro), cantarolava “pode acabar o mundo que eu vou dançar meu carnaval”. Era na Praça do Ferreira e no banco da esquina havia um morador ou uma moradora de rua esfaqueada. E me lembrei de como a arte pode ser tola.
Poderia seguir a narrativa e lembrar que, em 2013, Otto tocou na Praça Verde, que é pública e no entanto estava fechada (por um motivo justo: era preciso doar algum alimento não perecível); mas lotou tanto que algum jovem, já influenciado pelos protestos do passe livre em Porto Alegre, já sentindo o espírito do tempo querendo soprar nas asas do anjo algum entusiasmo anticapitalista, deve ter tido alguma frustração, não conseguido entrar pela porta da frente, e quando vi era aquele fumaceiro que parecia efeito de palco, mas não era, era leite ninho mesmo. Não pareceu nada pessoal, pareceu mais um cansaço de tanta encenação e espetáculo.
Poderia lembrar que o Ceará por um bom tempo foi capitania de Pernambuco, também poderia lembrar que algo de José Ramos Tinhorão faz sentido ao pensar, em A província e o naturalismo, a geração de setenta do século XIX de Fortaleza, seu curto verão literário, sendo a Padaria Espiritual o culminar desse processo, trinta anos antes do modernismo paulista. Nada que não tenha sido logo capturado como classe média e vida normal, rotineira. Mas aí incorreria no risco provinciano – o bom de estar em chamas é que não temos esse luxo, essa regalia – de querer, ao antropofagizar os centros, pretender-se centro. Ou ao antropofagizar, ou mesmo inventariar, o sertão e sua tradição oral e cordelista e cangaceira e messiânica e confederada e assim em diante, querer fazer assim uma construção que o Brasil mesmo nunca conseguiu: de uma identidade nacional; com mito fundador, heroísmo de guerra e tudo. Existe toda uma tradição de resistência dos povos originários que me faria recuar em pretender tal feito.
Então nos vemos no aqui e a agora de um século, dos frutos de um industrialismo e de uma série de fatores sociais recentes e autores e saraus e digestões ideológicas da crise (como diz Robert Kurz) e incertezas e amigos suicidados e fragmentos de palavras perdidos (ou achados) em sinais de trânsito e romances engavetados e um poder central que ultrapassa qualquer tragédia grega, qualquer drama moderno. Não há Sófocles ou Shakespeare que alcance a dramatização autofágica do poder nessa terra chamada Brasil. E fomos nós, os espectadores, que pagamos o espetáculo. Isso não é uma catarse, não possui efeito terapêutico-reparador; isso não é sublime, não faz a ponte com o outro irredutível, incognoscível; isso não é nem mesmo absurdo. Todas as demais questões passam, quase que necessariamente, pelo aqui e o agora desse cenário.