Elefante: E as vicissitudes da vida no paralelo com a morte

A poética do cinema pode emergir dos mais diversificados modos de se olhar para o mundo. A morte e todas as questões dela derivadas também se misturam a esse fluxo e no momento em que o fazer cinematográfico imprime tal elemento em sua mensagem, o resultado pode ser de um grandiosismo muito singular. Esse sopro de originalidade no exercício audiovisual é aquele atestado em obras como o irrepreensível “Elefante” (2003), de Gus Van Sant.

Neste que é um dos seus mais potentes trabalhos, o diretor norte americano nos apresenta uma estória ambientada no curso de um dia. Assim, transitamos no cotidiano de um colégio de Ensino Médio cuja rotina será alterada devido aos aos planos de Eric(Eric Deulen) e Alex (Alex Frost), que juntos, decidem matar – com armas compradas na internet – o maior número de pessoas possível na instituição. A morte, portanto, é uma das grandes matérias primas do filme.

Partindo de uma análise local, podemos dizer que Elefante se apresenta como obra não linear apesar da sua premissa relativamente clássica. Porque mesmo sendo construído numa estrutura episódica, considerando cada parte ou capítulo dentre os oito que o compõe, o longa aposta, não na conceituação dos acontecimentos como sua base capitular. Mas sim numa espécie de metástase fílmica em que as próprias personagens são os capítulos nos quais a obra se desdobra.

Mas como esses caracteres nos são dados a ver? A mise-en-scene, ou o modo como os atores se colocam na cena, se desenvolve a partir de uma relação técnica X montagem. A técnica nos evoca a maneira como a câmera, aliada à fotografia, atua numa dinâmica muito própria de certo distanciamento. Num limite da ação a ser acompanhada em cada personagem. Mas que ao mesmo tempo nos coloca muito próximos destes, percorrendo os corredores da escola ao seu lado ou logo atrás dos mesmos.

Essa tendência técnico-estilística¹ está intrinsecamente ligada á ideia desse cinema de poesia sugerido por Pier Paolo Pasolini (1965) e que Van Sant incorpora na argumentação de seu filme. Aliada também às tendências da expressão na primeira pessoa pelo estilo de representação de  um estilo indireto livre; e da apropriação de personagens que são da mesma forma porta-vozes do autor. A ideia da obra mergulha no psicologismo sem cair, entretanto, sob o risco do maniqueísmo da apresentação ideológica.

Isso porque, para além da estória de um massacre numa escola e suas consequentes motivações, Van Sant assume um primeiro compromisso com a estrutura fílmica. E através da montagem ele cria oito capítulos, cada qual correspondente a um aluno, que se entrecruzam por meio de longos planos-sequência. A partir dai, vamos entendendo como Eric e Alex chegam ao momento da matança no colégio.

A repetição da ação, no entanto, difere aqui da estrutura na qual o longa é montado. Já que as cenas e os planos se interconcetam através da montagem. Numa dilatação no espaço e tempo fílmicos onde um acontecimento é posto sob três perspectivas e por três vezes é reencenado no filme de pontos de vista distintos.

É como vermos Eli (Elias McConnell) tirando uma foto de John (John Robinson) em um dos corredores da escola enquanto que ao fundo observamos Michelle (Kristen Hicks) se dirigindo às pressas à biblioteca. (Ver imagem abaixo). A cena é reconstituída aos 19 minutos e 27 segundos, aos 35 minutos e 12 segundos e aos 55 minutos e 51 segundos de metragem. Vemos a mesma ação sob a ótica de John, Eli e Michelle. E cada tomada se dota de um ar original muito forte e preciso, como um deja vu que nos indica que vemos a um filme, mas também nos dando conta de como a experiência cinematográfica pode ser reveladora na maneira de vermos esse cinema.

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Tal revelação, na verdade, é a poética de uma arte que entende como operar os limites da nossa interpretação, nos instigando enquanto espectadores a olharmos para a tela não com um olhar de enlevo, mas sim de “descobertas” de novas maneiras de olhar. E também é o risco assumido pelo realizador, balanceado pela liberdade criativa na produção de uma obra que dialoga sob as contradições nas quais nossa sociedade está inserida.

A inquietação é, por isso, um dos traços que melhor definem a cinematografia contemporânea. Guardadas as suas proporções, as ideias e debates contidos nesses filmes, assim como temos em Elefante, nos são um alegre indício de que a arte se impõe. E por mais que os tópicos comerciais e industriais do cinema residam nesse fazer, o fio artístico será sempre mais forte. Nos vindo como um maravilhoso lampejo de realidade, tal qual Elefante o é e assim estará na história dos filmes em nossas vidas.

¹ AUMONT. Jacques. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. 2012

FICHA TÉCNICA
Título Original: Elephant

Gênero:  Drama, Thriller, Crime

Tempo de duração: 81 minutos

Ano de lançamento (EUA): 2003

Direção:   Gus Van Sant

 

Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.

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