QUANDO A MINHA MUSA INSPIRADORA, NOS EXTREMOS da generosidade que a faz tão singular, visitou-me – solícita e severa, serena e altiva, obsequiosa e perspicaz, dócil e rigorosa – para incumbir-me de produzir um poema, uma crônica, um conto ou algo que se lhes assemelhasse ou se lhes equivalesse, comprometendo-se a fornecer-me as devidas coordenadas do projeto e até acompanhar-me no curso do trajeto imaginativo, criativo, de pesquisas e, enfim, de produção, desde logo impondo-me algumas regras basilares, fundamentais para o mister, quais sejam: reverberar o entendimento de que palavras semanticamente opostas, naturalmente antonímicas, se submetidas à pressão demasiadamente humana, aproximam-se tanto que o distanciamento aparentemente expressivo entre elas, de polos diametralmente opostos, tende a minimizar-se, a reduzir-se a quase nada (ou como diria José Cândido de Carvalho, Do talho aos jornais era pulo de periquito.), com oferecimento de exemplos – alegria/tristeza ou riqueza/pobreza ou amor/ódio (neste último par fiei as minhas esperanças de lograr êxito); e construir conteúdo que mesclasse prosa e poesia, ou seja, com atavios e atrativos de razoabilidade melódica, além de alguns arranjos internos de rima e métrica em favor da essencial musicalidade, e conformidade realística, equivalendo a dizer que a veracidade dos fatos, se se verificasse tão somente no espírito criativo do autor, em algum ponto deveriam eles ser atados à realidade da humana existência na Terra, de sorte a não permitir que tudo se perdesse atmosfera a fora, como preso à balão desgovernado, ali, na minha rede de varandas, senti as caraminholas remexerem no interior do bojo craniano, movidas pelas infinitesimais e algorítmicas sinapses, as quais, de imediato, trouxeram-me à lembrança um tempo em que monitorei treinamento à distância em língua portuguesa, àquela época um experimento em TPD (atual sistema remoto, virtual de ensino/aprendizagem) – posto em prática ainda em duas outras versões: Matemática Financeira e Economia para Iniciantes –, curso promovido pelo banco, destinado gratuitamente a todos os servidores e apresentado em vinte módulos de louvável edição de conteúdo e gráfica.
E o que uma coisa tem a ver com a outra? Indagou-me, de pronto e com ar zombeteiro, o botão questionador de minha camisa azul de gola polo, demonstrando, como sói acontecer, não se dispor a protagonizar qualquer ação que, porventura, exija um mínimo de raciocínio e lógica. Satisfiz, então, a curiosidade do ente impertinente. É que um dos textos de abertura de módulo, ilustrado por chargista e assinado pelo já citado José Cândido de Carvalho, jornalista, romancista e contista (anedotário), autor do celebrado O coronel e o lobisomem, romance com publicações em Portugal, Argentina, França e Alemanha, carregava, já no título – O amor imortal morre de tarde –, a referência por mim considerada ideal para o desenvolvimento do par de antônimos (amor/ódio) que já escolhera como mote. Com efeito, nessa crônica-anedota (que compõe, com cerca de uma centena e meia de textos de mesma estrutura, a obra de humor e drama Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon*, cuja leitura causa um outro tipo de deleite, eu diria meio moleque, e, por isso, nestes tempos obscuros, sombrios, recomendável a considero), os personagens Mercedes Pires e Aniceto Castro se esbarram numa esquina qualquer, quarenta anos depois que sofreram as cruciais e cruciantes ilusões do amor, e os efeitos desse encontrão são, por assim dizer, hilários.
Em vão acabou tornando-se a busca pelo módulo perdido e, por consequência, pelo texto pretendido, eis que já lá se vão umas duas décadas. Em compensação, dois fatos dignos de registro daí derivaram. Um: a aquisição, por e-commerce, do livro do José Cândido (amigas e amigos, aqui cabe uma ressalva: a respectiva catalogação bibliográfica o classifica como “Romance brasileiro”, adicionando ao título a expressão, do próprio autor, “Contados, austuciados, sucedidos e acontecidos do povinho do Brasil”), do qual ora faço questão de transcrever, literalmente, as falas dos dois personagens pelo amor descartados:
[Aniceto para Mercedes] – Uma ilha desta tonelagem devia andar no meio da rua, com placa de caminhão nas costas. É páreo para ônibus e não para gente de calça e botina.
[Mercedes para Aniceto] – Cada tipo esquisito! Parece, de tão gordo, que está esperando criança. Se tivesse espelho em casa devia reparar que aquela sua cara de engomador elétrico não pode usar óculos nem costeleta. É cara para tomada de parede.
E pensar que entre eles o amor se manifestara de forma exagerada, absurda, in extremis… Outro: o reencontro com Paulo Leminski, o escritor e poeta, o musicista e letrista, o professor curitibano de estilo marcante, vanguardista e instigante, sob forte influência da cultura japonesa, por meio da crônica Sob o signo de escorpião, publicada na Folha de S.Paulo, em novembro de 1985, um quase ensaio sobre o suicídio, a partir da relação que o autor estabelece, no particular e logo na frase introdutória – Dos animais, só o homem e o escorpião se suicidam… –, entre o homem e esse aracnídeo artrópode que habita a Terra há milhões de ano, ressaltando, adiante, que O que diferencia os homens do escorpião é o estilo. (Desconsiderei, de imediato, ó gentis e fiéis leitoras e leitores, a hipótese de haver ocorrido aqui a serendipidade – “Ato ou capacidade de descobrir coisas boas por meio do acaso, sem previsão” – verificada em Ana Maria Gonçalves, a mineira metida a baiana, e o calhamaço de papéis velhos empilhados na sacristia de igreja em Salvador e por ela recuperados, tão logo percebeu o valor literário do que neles se continha e antes de serem levados ao destino que os aguardava, ou seja, o lixo, o que lhe rendeu a publicação do volumoso e instigante Um defeito de cor, cuja leitura eu também recomendo.)
Na sequência, Leminski percorre um longo caminho de referências a motivos e modos, os mais variados, pelos quais os homens se matam; segundo ele, há os que dão fim à vida por não conseguir liquidar dívidas assumidas e também há os que se submetem a tão tresloucado gesto até por prazer. Após referir os suicídios bíblicos – reis, generais derrotados e, o mais icônico, o Judas traidor – e as autoimolações orientais (o hara-kiri, por exemplo), o texto se debruça sobre os clássicos, a partir do protagonizado pelo herói grego Hércules, a capa envenenada e a pira funerária cujo acendimento se dá por raio enviado por Júpiter, a que se seguem a cicuta de Sócrates, os pulsos cortados de Petrônio, o salto no mar da poetisa grega Safo, as rodas de trem em Karenina, o arsênico de Bovary, o tiro nas têmporas de Camilo Castelo Branco, as dez ampolas de morfina de Walter Benjamin, o enforcamento de Maiakóvski, o afogamento proposital de Santos Dumont, o tiro no peito de Getúlio Vargas e os barbitúricos de Marylin Monroe. Leminski, que morreu precocemente, vítima de cirrose hepática após longo processo de autodestruição com contornos de suicídio sumário, no texto ora sob meu enfoque apenas alude ao final trágico do célebre pintor holandês Vincent Willem van Gogh (boa viagem, Van Gogh!), cuja morte resultou de um tiro dado no peito em meio a um campo de trigo.
Amigas e amigos, se Leminski ainda vivo fosse, certamente reescreveria tal crônica, atualizando-a por ampliação, para incluir o atualíssimo modus operandi do suicídio em tempos de “novo normal” pandêmico, em rituais negacionistas, de confrontação, de seguimento cego a orientações espúrias, sob a estimulação e o beneplácito de autoridades constituídas, em que potenciais suicidas se aglomeram sob qualquer pretexto e em menosprezo à Vida (a dele e principalmente a dos outros do seu convívio), sem os cuidados indispensáveis e sem a devida proteção de qualquer dos instrumentos de uso recomendado por quem enfrenta o letal coronavírus com tecnicismo e ciência. E, se o escorpião, quando cercado pelo círculo de fogo, “volta o ferrão da cauda contra sua própria nuca e morre com seu próprio veneno”, no caso concreto da Covid-19, há indivíduos que, apesar de ameaçados pela contaminação do vírus letal, faz tabula rasa do iminente perigo e, irresponsavelmente, se oferece ao inglório e absurdo holocausto da morte precoce por sufocamento, não raro após crucial passagem por unidade hospitalar para, por intervenção médica – da ciência, portanto –, tentar a reversão do quadro, numa destemida luta contra a Morte. E o que dizer de tudo isso? No momento, apenas reflito sobre esta frase de Leminski: Não há coisa que o homem não use para botar fim à própria existência. E, como, a rigor, somos impressionáveis, suscetíveis a estímulos externos, ora me protejo com a fina capa do “apartidarismo” político e, assim, acredito tornar-me imune a todo e qualquer tipo de influência de líderes, guias, mentores, mestres, mitos.
Ah, quanto à proposta da minha musa inspiradora, dela desincumbi-me com o conto RETALHOS DE VIDAS: do amor ao ódio… uma quase tragédia (12.6.2021), um drama envolvendo os protagonistas Romélia e Juliano, cujo liame com a realidade apenas se dá em dois momentos distintos: o trezenário e os festejos a Antônio, o santo casamenteiro, na igrejinha da colina, ainda na fase do “amor”, e a Policlínica Doutor José Eloy da Costa Filho, entre o Bonsucesso e a Vila Pery, já na fase do “ódio”. Tudo o mais que se credite – ou debite-se – à capacidade criativa do autor.
Nota do autor:
* Rubicon ou Rubicão – um pequeno rio de águas avermelhadas (razão do nome), no centro da Itália, que separava a Gália Cisalpina, uma província romana, da cidade de Roma e restante da península italiana. Ao atravessá-lo, Júlio César com a sua legião desafiaram o Senado romano, com graves consequências. Há registros de que, na ocasião, Júlio César teria dito a célebre frase Alea jacta est (A sorte está lançada).