É Preciso Vencer a Política da Noite dos Cristais, por Rafael Silva

A Noite dos Cristais ficou conhecida pelo atentado promovido pelos nazistas aos judeus, quando àqueles, fuzilando as lojas destes, fizeram das faixadas comerciais judias frágeis cristais misturados ao sangue dos inocentes. Ali a raiva e ódio anunciavam a trilha de uma política do medo, adoecida e marcada pela intolerância. Hoje, como ontem, testemunhamos que o ódio e a violência são dois gumes da mesma lâmina. E ainda não nos convencemos da inutilidade dessa lâmina nas relações sociais e políticas.

Em tempo, cabe lembrar que os nazistas promoveram o terror sobre os judeus depois de ter um de seus lideres assassinado por um fanático que achou poder livrar a fórceps seu povo daquela opressão horrenda. Apesar de expor a fragilidade das causas nazistas, acabou por gerar uma repressão ainda maior, e os judeus se viram obrigados a pagar impostos pesadíssimos ao poder público para limpar a rua no dia seguinte ao atentado.

O cenário brasileiro tem nos exposto a crise política e a ausência de referência – quase nos convidando a vivermos apoliticamente, como se isso fosse possível. Fomos invadidos por discursos de raiva, contra a corrupção, a favor da moral e dos bons costumes. A frase “o Brasil acima de tudo, e Deus acima de todos” é hoje repetida solenemente – por uns de forma covarde, por outros ainda com certa inocência. Em ambos os casos reproduzem o discurso da GESTAPO1 como se anunciassem a velha Noite dos Cristais.

Quanto ao atentado ocorrido em Minas Gerais, ao primeiro momento, podemos tomar emprestada uma frase do senso comum: “quem semeia vento, colhe tempestade”. Mas talvez esta frase seja muito rasa para explicar nossa conjuntura. Alguma mente mais atenta, e que nunca tenha tido a oportunidade de conhecer o conceito da dialética, pode questionar honestamente que “John Lennon não pregou ódio e morreu violentamente” derrubando o efeito do senso comum. Contudo, a frase acima nos serve de ponto de partida para apontar o debate necessário.

Para efeito didático,  permitamo-nos ampliar os exemplos! Incluímos além do pop star britânico, Mariele Franco, e por que não? Jesus Cristo – vítimas da violência que combateram. Rapidamente, percebemos que a simples comparação não permite confrontação com os fatos ocorridos com o candidato brasileiro. Mas por que? Porque ele, diferente dos outros, é fruto da violência que prega, e não da violência que combate. Eis aí a grande diferença! Cabe lembrar que em todos os casos, inclusive este em questão, estamos diante de um atentado político. Não resta dúvida! Porém as motivações se diferenciam na partida, apensar de se aproximarem na chegada. Eu explico!

Do ponto de vista sociológico, todos os atentados têm uma motivação política. Mas nem todos podem ser absorvidos politicamente pela sociedade. A morte política de lideres como Jesus de Nazaré, John Lennon e Mariele Franco paradoxalmente reacenderam suas causas. Até hoje são lembrados e, feito sementes, suas causas foram alçadas às outras gerações. Isso em alguma medida atesta que foram vítimas. Na contramão desse caminho está o atentado sofrido pelo candidato dos “profissionais da violência”2. O ato – cujas motivações também foram religiosas, semelhantes ao caso do judeu do nosso exemplo – expôs as fragilidades das causas levantadas pelo candidato. No primeiro momento, nossa memória associou suas práticas às de torturadores (apologista do estupro) e foi lembrada da sua incitação ao ódio, pregando metralhar opositores dias antes. No instante seguinte em que tomamos noticia dos fatos, nosso senso comum falou mais alto. A indignação se deixou vencer pelo reducionismo e, em alguma medida, não faltou entre nós quem regressasse ao senso comum.

Pois bem, a análise possível atesta que a restauração é uma fase intermediária, difícil de enxergar e definir. Se a Idade Média nos deu o direito divino, devemos arrancar da modernidade o divino direito à resiliência e a indignação. Por óbvio não se prega a morte de um opositor, ainda que ele seja um claro apologista do fascismo. Já dissemos aqui que “a minha responsabilidade com ele independe da responsabilidade dele comigo”. Mas, os fatos atestam que o candidato teima em ignorar direitos humanos mais básicos ao expressar suas ideias políticas. Opta por anuviar a violência do rio sobre as margens, tal qual faziam os nazistas. Recorre às mesmas fantasias para negar o presente, gerando exaustão da política encarnada em conspirações adoecedoras na busca de normalizar aquela triste Noite dos Cristais.

É preciso declarar novamente a utopia fiável cuja ebulição não suporta a farsa do medo, que oprime e sequestra nossa inteligência. É preciso anunciar e revelar a esperança. Dar-lhe corpo, voz e, sobretudo, organização no duplo movimento de encurtar o futuro e ampliar o presente3. Retirar a política da escuridão e permitir que ela seja iluminada pelo som do galo que impunimente anuncia a chegada do sol para novamente brilhar e superar a noite dos cristais.

Por Rafael dos Santos da Silva

Universidade Federal do Ceará – UFC

Professor

1 Polícia Secreta alemã.

2 Expressão simbólica do seu parceiro na chapa a presidência, Gal Mourão, para denominar seu grupo.

3 Ver Boaventura Sousa Santos em “Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências” cf em www.ces.uc.pt

Rafael Silva

Professor da Universidade Federal do Ceará e Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra - UC.

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Rafael Silva

Professor da Universidade Federal do Ceará e Doutor em Sociologia pela Universidade de Coimbra - UC.