E Nietzsche chorou, por Luciano Moreira

Abduziram-me.

E a isso me submeteram sem sequer me favorecer com o reconhecimento do inalienável direito ao êxtase em face do amplo e absoluto desconhecimento de tudo, ou seja, em completo desrespeito à minha notável, no caso, insciência.

E isso me impuseram sem sequer me conceder permissão ao indeclinável prazer de navegar por entre as brumas do meu profundo mar interior – às vezes, calmo; outras tantas, nem tanto –, onde as minhas suposições fictícias albergam seletas memórias de todo irremovíveis – certamente pela ação conservadora de alguma química provavelmente à base de sais que decantam em sinapses açuladas pela intermitência incontinente das improváveis ondulações de minha já cansada massa encefálica – e, como ser supremo de suas existências puídas, embora não decompostas, ainda, dispusesse-me eu a, num átimo aparentemente inútil, tempo que se esvai na fria ampulheta da vida, reinventá-las, recriá-las, revivê-las, e, assim, pudesse alcançar o desvendamento dos mistérios em que subjazem, perigosamente eu sei, elementos cruciais que carecem de desvelamentos e que ora se encapsulam em questiúnculas cujo revestimento lexical se materializa em Quem? Por quê? Para quê?

Sinto-me só, desamparado e frágil. Onde estou? Não sei.

Perplexidade. Não consigo divisar sequer o de que se recobre o chão em que piso, que me dá sustentação física e que me propicia o indispensável equilíbrio. De repente, um clarão de luzes várias que não me ofuscam os olhos, nem os incomodam sequer, embora de uma grandiosidade imensurável, emana incontrolável de uma explosão inexplicavelmente inaudível. Uma densa névoa de cor cinza esmaecido aflora do chão, indecifrável e indescritivelmente, provocando, no âmago do meu ser confuso e incrédulo do que vejo e sinto e vivencio, a sensação angelical de estar sobre nuvens, entre a certeza paupérrima do que me oferece o plano terreal, aprisionado num insabido e curto prazo de validade, e a incerteza desejada do que me inspira a religiosidade – crença e fé – em sede do plano celestial “post mortem“ e “ad aeternum”. Oh, my God! (expressão de sonoridade estranha porque inusual para quem já não encontra a mesma musicalidade na já desgastada pelo uso “Oh, meu Deus!”).

E a névoa de cinza pálido se dissipa velozmente, como que varrida por uma ventania que não se faz sentir. O aroma agradável e benfazejo de alfazema preenche os espaços em meu derredor e faz-me sentir o prazer romano de banhar-se em águas de odor calmante, reconfortante e terapêutico.

Tranquilidade. Tornam-se visíveis, então: o chão de granito bege, que resplandece calma e passividade e melancolia e que me favorece com uma sensação de conforto e aconchego, em grandes peças assentadas com elevado esmero, cujas junções aparentam não haver; no alto, em contraponto, a imensidão côncava de uma abóbada ogival gigantesca, apoiada em quatro colunas colossais, formando um esplendoroso conjunto arquitetônico de estética gótica, engenhosamente iluminada por feixes de luz solar refletida por um intrigante sistema de grandes espelhos estrategicamente dispostos, com funcionamento similar ao dos girassóis, e belamente adornada por uma única tela panorâmica que, recobrindo-a por inteiro, alterna obras que marcaram a arte sacra renascentista de Michelângelo com outras que bem traduzem a genialidade criativa e multiforme de Picasso.

Embeveço-me. Sinto-me a poucos passos do Paraíso.

Alheamento. Assusta-me a silenciosa e abrupta abertura de um alçapão retangular, de uns doze metros quadrados – quatro por três –, a uns dois passos de mim. Impressiona-me o brotar, do ventre da terra, de uma escadaria que, à medida que avança para o alto, em diagonal, revela a beleza, o esplendor de monumento ebúrneo: madeira nobre recoberta de marfim, vão de acesso largo, com guarda-corpo – corrimão e balaústre – que também esboça a estética gótica, em lance único com dezenas de degraus, em cujos espelhos se inscrevem, ao lado de uma numeração sequenciada, frases em fonte “French Script”. Toda a ação se conclui quando a parte superior da escadaria se encaixa na base de uma ampla entrada aberta para um mezanino suspenso, aparentemente construído a partir de duas das quatro colunas colossais que sustentam a gigantesca abóbada ogival.

Curiosidade. Estimula-me, então, o nobre e incontido desejo de perscrutar, de conhecer o novo, de desvendar mistérios, de investigar e esquadrinhar o que se me oferece tão secretamente. A escadaria. Sim, a escadaria à minha frente convida-me ao desvendamento do segredo que dá razão à existência do mezanino. Tento caminhar até ela. Não consigo. Não posso. Sinto os meus pés presos ao chão. Debalde todos os esforços.

Frustração. Silenciosamente, a ebórea escadaria inicia o seu recolhimento. Lentamente, em movimento constante, refaz o trajeto de volta ao ventre da terra. Com duas intrigantes e interessantes novidades. Uma: à medida que os degraus mergulham no retangular alçapão, as frases inscritas em seus espelhos deles se desprendem e esvoaçam íntegras pelo ambiente de raras claridade e calmaria, sempre subindo como se atraídas pela concavidade da gigantesca abóbada ogival, até desaparecerem completamente. Outra: o não-desfazimento do encaixe de seu degrau mais alto com a ampla entrada do mezanino que, incrivelmente, com ela desce até nivelar-se com e no piso de granito bege. E o segredo nele encerrado se revela, então. Uma biblioteca de incontáveis estantes em mogno. E, em todas, muitos exemplares de uma mesma obra.

Realidade. Desperto, saio do sonho com uma agradável sensação de leveza, de tranquilidade, de paz interior. Sento-me em minha rede de varandas, parceira de meus reconfortantes sonos. Na mão direita, o meu exemplar – lido e relido – de Quando Nietzsche chorou, de Irvin D. Yalom. O livro da biblioteca do sonho.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.