E Jesus dormia suavemente

Como o céu é do condor, a praça é do povo. A praça livre não é do ditador, nem jamais será. O povo é senhor da liberdade da urbe, quem decide quando e como estará relacionando-se nesses espaços ecológicos espalhados pelo mundo afora. Ontem, contudo, só havia a praça em seu vazio acolhedor. O povo ocupava outro vazio existencial: permanecia em seus aposentos, devido à potência da Natureza, manifestada em um microscópico organismo vivo – vírus – seres muitos simples e pequenos, formados por uma cápsula proteica que envolve um ácido originado em um açúcar da ribose. Essa permanência necessária dos humanos em seus lares tem uma razão profundamente ontológica: a defesa da vida diante da ameaça de morte. Como diz o cancioneiro popular, “sem vida não há motivo para cantar”.

 

A praça vazia não é apenas uma visão simbólica, demarca o momento histórico global: a necessidade de se repensar a caminhada humana, por meio de um mergulho pessoal, coletivo e institucional, na busca de novas razões para reorientar o exercício de nossas liberdades, muito além daquela econômica. O minúsculo vírus fez desabar os castelos de areia da ideologia hiperindividualista neoliberal de extremada competição predatória alicerçada na super-exploração da classe dominante sobre a massa de trabalhadores e do lumpesinato mundiais, advertindo-nos para algo fundamental: estamos todos interconectados e navegando num mesmo barco existencial; somos todos humanos, antes de qualquer especificidade ou diversidade.

 

Ontem, na solene subida dos degraus do altar na imensa praça acolhedora e vazia, o Papa Francisco corporificava o movimento ascético do humano que se esforça na prática do bem, indo naquele ato ao encontro do Sumo Bem para repousar e deixar-se embalar pela voz suave do Espírito que faz novas todas as coisas. Mística é o nome que nós humanos damos quando esses dois bens se encontram sinceramente. Porque o bem não busca seus próprios interesses, não se irrita, não se vangloria nem se regozija com a injustiça. O bem vibra somente com a verdade.

 

O trecho escolhido para meditação espiritual foi retirado do evangelho de Marcos (4,35) o qual relata o episódio da travessia de Jesus com seus discípulos em uma única barca, ameaçada de afundar devido ao grande temporal de ventos e às altas ondas que tornavam a barca pesada, no entardecer daquele dia. E Jesus dormia suavemente. O contraste é evidente entre as duas realidades. De um lado uma barca carregada pelo peso de pessoas preocupadas apenas com suas sobrevivências: “não te importas que pereçamos?”. De outro lado, Jesus com seu espírito leve, unido à Fonte originária da vida, que lhe permite não afundar, mas andar sobre as águas.
O Papa Francisco afirma: “A tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade. A tempestade põe a descoberto todos os propósitos de empacotar e esquecer o que alimentou a alma dos nossos povos; todas as tentativas de anestesiar com hábitos aparentemente salvadores, incapazes de fazer apelo às nossas raízes e evocar a memória dos nossos idosos, privando-nos assim da imunidade necessária para enfrentar as adversidades. Com a tempestade, caiu a maquiagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela abençoada pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”.

 

Também ontem, coincidentemente, o prefeito de Milão (Itália), Giuseppe Sala, admitiu na rede de televisão RAI ter errado categoricamente ao apoiar a campanha publicitária desenvolvida pelos empresários milaneses para a cidade não parar suas atividades no início da pandemia do coranavírus, em 27 de fevereiro, quando aquele país havia registrado apenas 14 mortos por covid-19. Um mês depois, a Itália já registra quase 10.000 mortos, metade na cidade de Milão.

 

Aqui no Brasil, governadores e prefeitos vêm desenvolvendo uma política responsável de isolamento social, com base nas orientações da Organização Mundial de Saúde e na experiência internacional adquirida com acertos e erros (como o da cidade de Milão) no enfrentamento da pandemia. Porém, numa direção contrária, de forma voluntariosa e autoritária, o presidente Jair está liderando um movimento para que na próxima semana seja interrompido o isolamento social. No mesmo momento em que o Papa Francisco orava na Praça de São Pedro, o governo federal lançava uma campanha publicitária nacional com o slogan semelhante ao da cidade de Milão, “O Brasil não poder parar”, estimulando o fim do isolamento social conclamando o retorno ao trabalho, enfatizando que raros são os casos de vítimas fatais entre jovens e adultos. Foram usadas como teste da campanha as redes sociais bolsonaristas. Em oposição ao presidente Jair, 27 governadores de estado se uniram numa frente ampla para exigir maior responsabilidade do governo federal nessa complexa crise sanitária na qual o Brasil e o mundo estão envolvidos.
Concluímos com o Papa Francisco: “Perante o sofrimento, onde se mede o verdadeiro desenvolvimento dos nossos povos, descobrimos e experimentamos a oração sacerdotal de Jesus: «Que todos sejam um» (Jo 17, 21). Quantas pessoas dia a dia exercitam a paciência e infundem esperança, focadas em não semear pânico, mas corresponsabilidade! Quantos pais, mães, avôs e avós, professores mostram às nossas crianças, com pequenos gestos do dia a dia, como enfrentar e atravessar uma crise, readaptando hábitos, levantando o olhar e estimulando a oração! Quantas pessoas oram, se imolam e intercedem pelo bem de todos!”.

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