Drummond: um poeta lírico na periferia do capitalismo, por Pedro Henrique

A cultura construída por sobre o fetiche da mercadoria – relação material entre pessoas, relação social entre coisas – é, decerto, sempre ambígua: atravessa-lhe, de modo quase inescapável, a repetição do que há de arcaico neste mundo – a dominação e o sofrimento, a alienação e o estranhamento – e a figuração de novas possibilidades de emancipação, de “felicidade coletiva”.

Esse entrecruzamento de arcaísmo e utopia tem um registro singular nos períodos infantis, por assim dizer, da heterogênea, ainda que sob a forma da homogeneização – desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo –, experiência das sociedades modernas nacionais. Para o país quase nada (!) tupiniquim, o Brasil, isto parece ser válido da Primeira República, com sua “política do café com leite”, ao Estado Novo, com sua modernização da indústria de base e leis trabalhistas; deste aos “cinquenta anos em cinco” da administração federal de Juscelino Kubitschek.

A figuração poética, visivelmente ambígua, a ser retomada desse período não seria bem o modernismo da Semana de Arte Moderna, mas a lírica de Carlos Drummond de Andrade. Filho de fazendeiro que deixou o tédio da incipiente modernização de Uberaba (Minas Gerais) – “Eta vida besta, meu Deus” (Cidadezinha qualquer) – para ser um gauche, ainda que funcionário público, na capital brasileira do século XIX – substituída por Brasília no séc. XX e candidata a capital do (fim do) mundo no séc. XXI após o incipiente e cínico despertar do gigante –, o Rio de Janeiro.

Nesse percurso, perpassa a Drummond o megalomaníaco sonho juvenil de ter o coração mais vasto que o mundo e o choque da multidão na cidade grande – “Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração” (Poema de sete faces); sua antítese é o sentimento de que seu coração não é maior que o mundo (Mundo grande), sua síntese se encontra no verso: “O mundo é grande e pequeno” (Caso do vestido). Estão inscritas nesse percurso as suas cinco – primordiais – primeiras obras: de Alguma Poesia a Rosa do Povo.

Em A Rosa do Povo está inscrito o tumulto, mesmo sendo “tão fortes as coisas” (Nosso tempo), mas este parece encontrar sua rendição algum tempo depois em “Eu, etiqueta”: “Eu sou a Coisa, coisamente”. Ter o “tempo presente” (Mãos dadas) como matéria ao lado de uma concepção quase eleática do fazer poético em “Procura da poesia” parece dar continuidade à ambiguidade existente no fazer poético e entre ele e sua crítica, ou apenas comentário, como em Charles Baudelaire.

No caso de Baudelaire, poeta lírico – sinestésico, vidente, matizador de correspondências, também ele “mestre em fantasmagorias” (Rimbaud) – no contexto da modernização parisiense no séc. XIX, Benjamin o retomou na ambiguidade que atravessa seus versos e o ofício de crítico; de um lado, para Baudelaire a arte era um modo de alçar o eterno mediante o material transitório e baixo (a prostituta, o trapeiro, a embriaguez, a multidão) da sua experiência social contemporânea, matéria esta que coexistia com seus versos alexandrinos; de outro, sua concepção da arte pela arte, resistente à mercantilização e atada ao conceito de gênio criador, o manteve averso ao modo como as novas técnicas de reprodução técnica da imagem exigiam uma redefinição do conceito de arte, como no caso da fotografia e do cinema.

Assim como a Baudelaire, a Drummond parece ser a melancolia o pássaro de sonhos que choca alegoricamente, ou mesmo apenas prosaicamente, o material da quase ininterrupta experiência de choque nas grandes cidades, com suas indústrias, “tanta perna, meu Deus”, sua velocidade-ferocidade.  Com um olhar um tanto embriagado de poeta “bêbado no bonde” da história, não seria inoportuno lembrar seu apelo profundamente atual ouvido na aurora, misto de leite e sangue, nesse amanhecer – mais noite que a noite – do séc. XXI:

Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade.

Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de verdadeira poesia.

O último trovador morreu em 1914.

Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples.

Se quer fumar um charuto aperte um botão.

Paletós abotoam-se por eletricidade.

Amor se faz pelo sem-fio.

Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta

muito para atingirmos um nível razoável de

cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoram

e matam-se como percevejos.

Os percevejos heróicos renascem.

Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.

E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

Desconfio que escrevi um poema.

(Drummond, O sobrevivente, Alguma poesia)

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"

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