DIÁRIO DE UM ESCRITOR DE PROVÍNCIA. PRÓLOGO (IV)

Não tenho conselhos, sempre aviso, talvez meia dúzia de lamentações, mas se tivesse um conselho seria: não escreva cartas nem poemas de amor; se cometer essa falta, que reside entre o pecado e o crime (e só de me ouvir dizer não você é provável que caia numa tentação como numa armadilha, mas a armadilha não é minha), se cometer a falta de escrever (seja amador além de amante), não publique: a lírica amorosa, a poesia de amor (ninguém sabe nunca o seu destino) pertence ao remetente. Qualquer publicidade posterior é traição ao objetivo original. Isso vale para as relações presentes e para as perenes; isso vale para as que já se desfizeram e para as que ainda vão se formar para no futuro se desfazer, desmanchadas. Nesses escritos clandestinos, que pode ser que fosse melhor não escrever, mas acabam sempre escritos, ainda aconselho, seja sempre grato, não importa a resposta da outra parte.

O mais prudente – insisto – seria sempre que o poema não nascesse: pense nele, se for irresistível, e será irresistível, lhe dê mesmo uma forma e o ritmo mais perfeito. Se puder dizer a confissão desesperada a um ouvido, sequioso ou indiferente, o certo ou o errado, faça (muito provável que se troquem as palavras que mantinham a perfeição e o equilíbrio: a contradição literária do amor é que ele ainda não suporta as palavras de ir comprar pão): a condição é não memorizar além do instante. É quase o que Camões chamava a sua discrição de amor, e antes dele parte da poesia trovadoresca, vassala. Camões, moderno, latino, fazia isso em sonetos em que elencava suas qualidades de amante. Ser discreto era também ser humilde. Como o poeta é conhecido e célebre não houve propriamente discrição: ele se gabava.

O amor, como outras coisas da vida, será mais de uma vez uma tentação, a mais cheia de promessas, por mais que se omita o crédito do mundo. Seu ouvido, eu sei, buscará murmúrios r sussurros. 

Não há como conhecer a vida sem conhecer o amor, ainda que haja os que mintam bem sobre o assunto. Pois o fingidor finge eventualmente melhor a dor que jamais sentiu. 

Meninos e meninas, os escritores são seres humanos. Os seres humanos são capazes de mentir. A conclusão do silogismo é quase desnecessária: o escritor precisa confessar que a mentira é um dos princípios possíveis da própria literatura, ainda que ele possa, burro, amador, quase suicida, derrapar numa desastrosa sinceridade autobiográfica. A própria verdade do amor é dessas que estragam tudo. Disso, é claro, só posso falar do meu ponto de vista estritamente masculino. Será mesmo assim tão estrito?

É necessário ouvir a própria mãe, necessário e inescapável – vasculhe na memória –, cantando ou selecionando as músicas que vai ouvir durante os pesados afazeres da casa. Será uma lembrança da sua infância, de quando as canções mesmas não pareciam tão claras. Quando compreender o sentido profundo daquelas canções, não bloqueie as lembranças de que eram aqueles lamentos que sua mãe ouvia e cantava. Pense, menino, que ela tem toda uma vida além da maternidade. Quanto mais você souber, menino, ou vai desejar nunca mais amar, ou vai querer amar sempre um pouco mais e um pouco melhor, e atrás das boas intenções sempre vem uma porção de burradas. Sempre precisamos prometer melhor amar porque precisamos bem dormir. Prometemos mui sinceramente, e ainda assim erramos, menino, por quê? 

Talvez eu mesmo ainda precise de um conselho. O mais egoísta dos escribas diz: não mais, ou apenas de longe.

O amor pode não ser traído pelas tentações do mundo. Será traído por uma tentação sacerdotal: a escrita não é uma profissão de que se retorne; quem escreve está marcado como Caim; como o pecador que é pecador até quando dorme e talvez nos sonhos; assim também o escritor.

A tentação de se expressar em versos será tanto maior quanto pior for sua forma de expressão. São esses muita vez os poemas mais exatos: expressam a gagueira e o amadorismo. Sua publicação seria uma traição e uma vergonha dupla.

Ame, é mesmo inevitável tanto quanto arriscado. Posso aconselhar que o erro não se repita? Faça mesmo isso, do lado que os amadores chamam de errado e que os profissionais chamam de errado também. O lado do sofrimento e o da solidão. A partir daí pode ser que seus poemas sejam os melhores. Ou uma série de lamentações que não interessam a mais ninguém. 

Escreva esses poemas de amor, melhores ou piores.

Terão sempre a desvantagem de ser letra sem comércio.

Ninguém nunca saberá se foram os últimos.

Escreva cada um deles, um por um.

E depois rasgue todos.

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