Diagnóstico do mal, por PEDRO HENRIQUE

I

 

Desfecho de um século, de um milênio, de uma época. O século XXI irrompe o paradoxo do mundo capitalista globalizado: sua vitória planetária coincide com sua crise derradeira. Crise econômico-financeira, político-estatal, social e ecológica, humana e cultural. Indivíduos atomizados contrastam a crise da totalidade. A comunicação é apenas consumo unilateral de informação. A arte perdeu-se no vazio das formas. Os hábitos, costumes, crenças que marcaram as distintas culturas se afastam numa representação, em algo separado da vida, que o cidadão (o cadáver do homem) contempla na vã tentativa de preencher o vazio de sua vida. O trabalho não liberta nem dignifica, ao contrário, aprisiona e amesquinha, e, no entanto, nem a essa miséria temos mais acesso: é um sinal que está fechado não só para nós que somos jovens. O consumo de lazeres e mercadorias em geral é cada vez mais incessante, cada vez menos saciador. O dinheiro é a cada dia que passa uma alma penada, um pedaço de papel que perde sua substância. O Estado entra em crise com a crise do dinheiro. Viver sem ele? Uma grande parte da humanidade já vive! A educação e a política são ilusões que já não encontram chão. As pessoas estão impotentes, esvaziadas, brutais, fica a cada dia mais difícil pensar numa mudança que parta da consciência: a identidade entre ser humano e mercadoria é a identidade entre ser humano e máquina, entre o ser e o nada. Quem espera que o capitalismo se desenvolva no século XXI espera Godot – Godot não virá! O mundo do capitalismo acabou, no entanto, continua-se… 

 

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.

A vida inteira que podia ter sido e que não foi.

Tosse, tosse, tosse.

 

Mandou chamar o médico:

— Diga trinta e três.

— Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . .

— Respire.

………………………………………………………………………………………

— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.

— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?

— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

 

Manuel Bandeira (1886-1968)

 

II

   

Nos marcos do século XXI, o paradigma da contradição entre capital e trabalho vai se tornando a cada dia mais obsoleto, vai entrando em declínio. Fazendo jus a um postulado do materialismo histórico, a terceira (e agora quarta) revolução industrial irrompe o limite da sociabilidade pelo valor: o trabalho humano torna-se supérfluo diante das máquinas, e o tempo de trabalho acaba por esvaziar seu sentido de medida da riqueza socialmente produzida, batizada com o nome de mercadoria. A crise do trabalho se apresenta, assim, ao mesmo tempo como crise da esquerda e crise da valorização do valor, do próprio capital.

Esse é um contexto de paralisia não apenas do pensamento crítico. Ora, mas há algo de hilário, algo de tragicômico nesse panorama! A crise do capitalismo acaba por coincidir com a crise de sua crítica. Ao que parece, a contradição entre capital e trabalho, cerne das modernas lutas de classe, se trata de uma contradição imanente ao sistema produtor de mercadorias. Uma crítica que questione não as insuficiências desse mesmo sistema, mas seu fundamento, precisa se reportar à relação intrínseca a ambas as classes: a relação de valor. É como se a crítica da mais-valia deslocasse a crítica do valor. A primeira questiona a sua respectiva distribuição; e a segunda, identifica na realidade uma inversão basilar: a relação entre “homens” se apresenta como uma relação entre coisas.

Trata-se de uma relação fetichista: o morto assenhora-se do vivo como o passado atormenta com o espectro da culpa um penitente. Nesse sentido, a história humana parece ser algo mais que uma história de luta entre classes, parece ser antes uma história de relações fetichistas: as relações pré-modernas encontraram sua síntese no sagrado; a relação moderna encontra sua síntese no dinheiro – forma manifesta do valor, que possui o trabalho humano como substância social quantificável no tempo conforme a produtividade.

Sem uma crítica desse paradigma de produção baseado no dinheiro como princípio e fim, como alfa e ômega da vida social, ao qual conhecemos por capitalismo, quer se trate de um viés estatista ou liberal, permanecerá o impedimento de uma transição a uma humanidade emancipada dos grilhões que ela mesmo forjou. O capitalismo veio a consumar no século XXI o último Império, que não é Império de Khan algum, de nenhum César ou Alexandre, ou mesmo Império familiar Rothschild, Bush, Rockefeller… mas Império reificado, no interior do qual, em todos os setores da vida, as coisas se subjetivam enquanto gente vai se tornando coisa, e hoje ainda mais coisa supérflua, inútil, estorvo. Prenunciar sua queda não seria tão belo quanto o prenúncio da vida futura que ainda havemos de criar:

 

Um dia, quem sabe,

ela, que também gostava de bichos,

apareça

numa alameda do zôo,

sorridente,

tal como agora está

no retrato sobre a mesa.

Ela é tão bela,

que, por certo, hão de ressuscitá-la.

Vosso Trigésimo Século

ultrapassará o exame

de mil nadas,

que dilaceravam o coração.

Então,

de todo amor não terminado

seremos pagos

em inumeráveis noites de estrelas.

Ressuscita-me,

nem que seja só porque te esperava

como um poeta,

repelindo o absurdo quotidiano!

Ressuscita-me,

nem que seja só por isso!

Ressuscita-me!

Quero viver até o fim o que me cabe!

Para que o amor não seja mais escravo

de casamentos,

concupiscência,

salários.

Para que, maldizendo os leitos,

saltando dos coxins,

o amor se vá pelo universo inteiro.

Para que o dia,

que o sofrimento degrada,

não vos seja chorado, mendigado.

E que, ao primeiro apelo:

– Camaradas!

Atenta se volte a terra inteira.

Para viver

livre dos nichos das casas.

Para que doravante

a família seja

o pai,

pelo menos o Universo,

a mãe,

pelo menos a Terra.

 

Vladimir Maiakovski (1893-1930)

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