“Pátria minha…A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca: a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina no mar”.
“Pátria Minha”, Vinicius de Moraes
Mergulhamos nestas “terras brasilis” por entre águas turvas de inquietantes paradoxos. E não é de agora, faz tempo, lutamos contra a correnteza revolta de ideias improvisadas, de crenças envelhecidas e novidades improváveis que, a rigor, sequer são novidades. E a tal ponto haveríamos de chegar, em muitas décadas, séculos bem contados, que já não nos basta o desabafo de quem perdeu de todo a capacidade de enxergar o futuro. Deixamo-nos dominar por credulidade ingênua de que, afinal, nem tudo está perdido. Cai, bem a propósito desses cavilosos sentimentos, a confissão amarga de Millôr Fernandes: “O desespero eu aguento. O que me apavora é essa esperança”…
As crises são, deveras, criativas para quem não perdeu nada
Há os que repetem com persignação a mantra de que “toda crise é criativa”, “unidos venceremos”, “é preciso pensar grande”, “é preciso rejeitar a teoria destruidora do quanto pior, melhor”, “somos maiores do que o mosquito”… O que mais assusta nesses transes patrióticos é que muitos acreditam nessas jaculatórias salvadoras. No passado, aceitamos que éramos uma “ilha de esperança e tranquilidade no mundo”, vivemos, orgulhosos, o “milagre brasileiro” e o “Brasil, ame-o ou deixe-o”, convertidos às palavras da redenção. Fernando Henrique Cardoso cunhou expressão que o acompanhou pelos dois governos e lhe traz, ainda hoje, sombrios aborrecimentos: às críticas de suas obras e artes chamou de “nhém-nhém-nhém”. Medici convidara os impatriotas a ir embora. Por agora, essas criaturas recalcitrantes ao convencimento da Revelação são batizadas de “derrotistas”, gente de vista curta, “neoliberais” golpistas. Enfim, somos, nós brasileiros, cidadãos de pouca-fé, não damos tréguas aos governos, desejamos o desastre, adoecemos por simples birra para ver o SUS pegar fogo e levar o sistema de saúde à inadimplência.
Auto-purificação política(catarse): modo de usar
Traço singular e simpático do caráter brasileiro está na sua capacidade de rir de suas próprias dificuldades, zombar das pequenas-grandes tragédias de sua vida como povo e nação, de recobrir as maldades, a desonestidade e a inépcia dos agentes do poder com o manto irônico da anedota. Essa engenharia da catarse de fuga dá-nos a capacidade de transformar certezas em dúvidas, crimes em virtudes, faltas em tropeços, amarguras em risos. E reduzir a hipocrisia do homem público (sem as mentiras, as verdades não existiriam…) a metáforas do bem fazer (o “rouba mas faz”), por obsequiosa renúncia da consciência.
O brasileiro cordial
Teríamos sido diferentes no passado? A dualidade que deu origem a muitos embates, ao longo de nossa História, ganhou, ao passar do tempo, formas novas, moldando-se a ideologias da moda, e às novas circunstâncias sociais e econômicas. A figura romântica do “brasileiro cordial” (diferente da imagem que dela fazia Sérgio Buarque de Holanda) não encontra paradigma verdadeiro em nossa vida nacional, monárquica e republicana. Ainda assim, respeitados esses atributos heroicos, nunca fomos dados a grandes embates, além das antessalas e dos gabinetes do Estado. Nem mesmo nas ruas, nos espaços da controvérsia ou dos embates de armas fomos além da prudência diante das forças da ordem e da segurança pública. Em momentos raros, trágicos, demo-nos a esses impulsos, já apagados pelo tempo e pelas lembranças desfeitas na memória passageira dos brasileiros.
Somos, segundo imagem duvidosa, um povo pacífico. Aprendemos a conciliar o inconciliável, com elevada elegância e uma certa inclinação oportunista. Em Mafra, onde o Regente Dom João conciliava posições adversas em relação às conquistas napoleônicas que ameaçavam a Península, havia políticos “ingleses” e “franceses” porfiando “suas” razões de Estado. O jovem Regente punha-se nessa refrega diplomática como moderador distraído, afinal não seria ele que assumiria a responsabilidade pelo que viesse decidir… Seguimos essa experiência por todas as repúblicas, além das duas monarquias luso-brasileiras.
A palavra é a arma dos cidadãos de bem…
Tornamo-nos sede da Monarquia graças ao exílio auto-imposto pela Coroa portuguesa, sem escaramuças, com algumas diatribes verbais, certamente, ao estilo lusitano, e reclamações de cortesãos que abominavam os mosquitos e o mau cheiro das ruas do Rio de Janeiro.
Fizemo-nos Império, independentes, em momento de exasperação do Príncipe, lá para os lados do Ipiranga, diante do espanto de tropa reduzida, na presença daquele ato insólito. Refregas aqui e ali. Batalhas verbais eloquentes. Algumas boas ideias “bonifacianas” logo desprezadas pelas intrigas cortesãs. Novos antagonismos dissimulados. Escravismo, monarquismo, republicanismo. E, de repente, em noite aberta, ao fulgor da espada de um velho Marechal, anúncio de futura estátua equestre, nasceu a República: muxoxos jansenistas e monárquicos, adesões patrióticas, a ira dos reinóis, a incredulidade dos autóctones e desconfiança divertida das nações amigas. A chegada dos militares, o advento dos políticos convertidos às pressas da monarquia para as promessas republicanas. E tome-se lá 127 anos de velhas e novas repúblicas, “Estado Novo”, “Revolução”, e “Brasil, país de todos”, “Pátria Educadora”. Constituições, outorgadas, delegadas, com o crivo de autoridade de artesãos da lei — e muitas mudanças, salvo as essenciais transitaram pelos balcões da coortes aliadas às justas da ordem.
Somos, segundo imagem duvidosa muito difundida, um povo pacífico. Nossas oposições e as contraposições internas dos atores políticos ou seja lá o que politicamente representassem, buscaram, sempre, nas horas mais frementes dos embates, a conciliação, a conveniência tranquilizadora dos acertos, das alianças feitas, historicamente, “por cima”, bem ao gosto das elites e de suas ambições patrióticas. Ou pela convergência das afinidades corporativas e sindicais.
Oposição é, sempre, um mal negócio: para quem a faz e para quem a suporta…
Ainda no Segundo Império, articulou-se o famoso Ministério da Conciliação, modelo e inspiração de estratégias de governo que garantiriam, tempos afora, judicioso equilíbrio de interesses em torno de aspirações públicas reservadas ( João Paulo Soares Alsina Júnior, 2015, pág 19).
A conciliação no terreno movediço do jogo político (também reconhecida como negociação ou “repactuação” de aspirações conflitantes, neologismo recentíssimo que induz e explica o reequilíbrio de forças partidárias em dissolução) surge menos de contrapontos ideológicos ou de formulações de políticas de governo antagônicas do que do compartilhamento dos bens do Estado administrados pelo governo. Recursos políticos, como ensina a teoria política, avaliam-se pelo poder de influência que são capaz de gerar nas relações igualmente políticas entre pessoas “influentes”, tanto mais influentes quanto seja o alcance de sua atuação em instâncias diversas da vida social. Sob essa perspectiva não há conflito por menos transeunte que seja e resista à força de alianças bem concebidas. A capacidade de distribuir empregos ou fazer transitar, de forma adequada, suprimentos propícios de financiamento para partidos e candidaturas, mercê de fraternais ligações na fazenda do Estado, é a justa medida do poder e do talento para promover fatos e circunstâncias eficazes.
Democracia representativa com partidos de aluguel?
O quê fazer neste ponto onde chegamos, atraídos por prélios republicanos incertos e duvidosos, vivendo a fantasia de uma democracia representativa, em cuja armadura se enfiaram autocratas e populistas, reformistas e conservadores de ideias mal digeridas, burocratas e profissionais remidos da política, ideólogos fundamentalistas, cada um fazendo uso da palavra democracia, segundo inclinações léxicas particulares? Como navegar entre assomos de uma “contra-democracia” que se quer democrática?
Quão legítima pode apresentar-se um sistema partidário tomado de assalto por 26 partidos, carecidos de projetos e de lideranças, recolhidos a clubes de interesses ou em incestuosas relações familiares que compartilham o Fundo Partidário, as contribuições privadas, os “lobbies” militantes – e os bens do Estado?
Simulacros e estratagemas da política brasileira: a “nova” semântica republicana
A vida pública brasileira é percebida por parte substancial da população dotada de consciência política como o espaço de simulacros e de estratagemas. A quem aproveitará esse mal estar e o descrédito causado pelos atores políticos e a perda de confiança nas instituições públicas? (Schwartzenberg, 1998, pág. 9).
Chegamos a um ponto crítico da curva de nossa vida política quando a aparência suplanta a realidade. Os atores públicos perderam, no Brasil, o “script” de seus papéis: o discurso político tornou-se, entre nós, exemplo de banalização da inépcia e da negação da verdade.
Apagou-se o equilíbrio da retórica política: a lógica e a gramática foram esmagadas nos tropos suspeitos da fala dos agentes do Estado, a metáfora e a metonímia transformaram-se em figuras de insulto pessoal. Do desmantelo da semântica política fez-se o desregramento de princípios e doutrinas e a relativização de valores essenciais. Desrespeitam-se as instituições e os procedimentos legais; instrumentos normativos subalternos sobrepõem-se à Carta das regras fundamentais, criam-se conselhos populares em desrespeito ao princípio democrático e republicano da representação e do mandato.
Conflito de legitimidades e o legal
Movimentamo-nos por estes dias incertos em um cenário que, embora novo não seja, está ocupado por atores desconhecidos, muitos deles sem ter decorado a sua fala a tempo, desamparados pela inexistência do “ponto” que já não existe próximo à boca de cena. Defrontamo-nos, nesta quadra política, por muitos títulos insólita, menos com um problema de legalidade do que com um compósito característico de legitimidade.
A curul presidencial está ocupada por um titular eleito com aproximadamente 51,64% dos votos, no Segundo Turno, contra os 48,36% de seu concorrente (aproximadamente 3 milhões e 400 mil votos de diferença). Em poucos meses, acentuou-se a queda vertiginosa dos índices de aprovação, em decorrência do mau desempenho da administração, assediada por graves questões econômicas e financeiras, escândalos e desajustes políticos notórios. Aprofundou-se a impressão de um estelionato eleitoral, logo que foram sendo anunciadas medidas administrativas e financeiras rejeitadas na plataforma eleitoral da candidatura vencedora.
Sucessão de eventos significativos, no plano judicial e político, mudanças ministeriais e rompimentos políticos no campo da Base Aliada. Ameaça de Impeachment, com denúncias em tramitação nos foros políticos e judiciais competentes.
Alternativas do jogo político-institucional, na emergência da declaração de impedimento presidencial: perda do mandato do titular com assunção do substituto legal, o vice-presidente. Caso não seja aprovado o Impeachment: permanência da titular da presidência no cargo, até o termo de seu mandato.
Percalços a serem enfrentados, no caso da permanência da atual ocupante do cargo presidencial: incerta legitimidade de sua permanência, embora não lhe faltem condições legais para tanto, por conta das denúncias contra o governo e dos baixos índices de aprovação de desempenho pelas pesquisas de opinião.
Percalços a serem enfrentados, no caso da aprovação do Impeachment, com a posse do vice-presidente: elevado tônus legal, porém baixos indicadores de legitimidade. Explicação plausível: o vice-presidente foi coparticipante das mesmas decisões presidenciais, quando substituiu a titular, em seus impedimentos. Pertence, desde à eleição, à mesma formação partidária, seu perfil confunde-se com o da administração e as forças de apoio que lhe dão sustentação.
Mais uma vez, mostra-se prudente a adoção de medida conciliatória, desta feita, sim, em favor da paz social e do equilíbrio político da nação. Renúncia do titular e de seu substituto eventual (contam, sobretudo, as razões de legitimidade) e dos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados, com a transferência do exercício da presidência para o presidente do STF, com a finalidade de realizar, a prazo, novas eleições presidenciais. As dos dois primeiros por constituírem-se em pedra de toque dos impasses institucionais que se vão agravando rapidamente. Os dois últimos, em decorrência de processos criminais em tramitação. Em todos os casos, a renúncia individual ou coletiva haveria de ocorrer por livre aquiescência, dentro do compromisso de um amplo pacto para preservação das instituições. Sem falar na possibilidade que se abriria da reabertura de novo processo eleitoral, com o qual se corrigiriam vícios apontados na eleição anterior, dos conhecidos e dos que são objeto de julgamento em processos judiciais.
As possibilidades aventadas surgem ao entendimento como decorrentes de uma imposição que se exerce dominantemente em resguardo das condições de legitimidade do poder presidencial, considerando que as circunstâncias indicam a sua prevalência sobre questões normativas de legalidade.
Sobre conflito de legitimidades: o “povo-eleitor” e o “povo-opinião
O Estado moderno está condicionado por novos controles sociais que não derivam unicamente dos controles legais e normativos, mas que, nem por isso, carecem de força para produzir efeitos e consequências nos amplos quadros dos espaços republicanos.
A ideia de “poder de supervisão”, “pouvoir de surveillance”, para Pierre Ronsavallon (2006, pág. 35) surge com a Revolução francesa e teve por objetivo “contrabalançar a tendência dos representantes a se autonomizarem”. É uma espécie de supervisão dos representantes da nação pela nação. Essa figura não se assemelha a forma dissimulada de democracia “direta”, a que se alude atualmente, numa tentativa de fratura do sistema republicano de representação, a exemplo dos conselhos dos sovietes, instaurados em 1917, quando a revolução comunistas ainda não lograra instituir e controlar o aparelho de governo do Estado que veio, et pour cause, chamar-se de soviético. O poder de supervisão a que alude Ronsavallon correspondia, de certa forma, à instituição de uma força de “desconfiança” envolvendo a disfuncionalidade do exercício do poder. Robespierre acreditava, com seu viés jacobino, que a “desconfiança é a guardiã dos direitos do povo; ela está para o sentimento profunda de liberdade assim como o ciúme está para o amor” (2006, 36). Essa vigilância realizar-se-ia pelos cuidados de velar, denunciar e avaliar, três fases do poder de supervisão.
Dessa forma o sistema eleitoral-representativo confrontaria diversas formas de “supervisão”. Embora correndo o risco de redução exagerada, seria possível contrapor-se ao poder do Estado e das formas representativas do seu exercício os controles da opinião. Os controles do “povo-eleitor”, representado pelos que foram designados pelas urnas (2006, 107) e aqueles do “povo-opinião” expresso pelos órgãos de opinião, a mídia em sua múltiplas variações.
Nesse quadro, surge, no corpo das constituições modernas, a possibilidade da “deseleição”, uma forma manifesta de “democracia de sanção”, mediante procedimentos que frustram ou impedem reeleições em face de fatores, condições e circunstâncias legalmente inscritos. Essa forma de deseleição reafirma e fortalece o princípio do “impeachment” como “deseleição”, ex post facto.
A descoberta do inimigo: o desafio da democracia representativa
Georges Smiley (“O Espião que veio do frio”), personagem de John Le Carré, assiste da janela da sua sala, quando o nazismo dava seus primeiros passos triunfantes, estudantes da juventude hitlerista atirando livros da biblioteca em uma fogueira no pátio da universidade. Nada pôde fazer, a não ser ficar fumando, com aquela alegria selvagem e quem descobriu, por fim, o inimigo.
Ficaremos nós à janela assistindo temerosos e convenientes ao nascimento de novos inimigos desta “pátria tão pobrinha”, “…uma ilha Brasil, talvez”, nas palavras ternas de Vinicius? Quedamos, assim, contraídos, na passiva e frustrante posição de um coitus politicus interruptus?
Notas:
João Paulo Soares Alsina Júnior – “Rio-Branco, grande estratégia e o poder naval”, FGV, Rio, 2015.
Roger-Gérard Schwartzenberg – “La Politique mensonge”, Éditions Jacob, Paris, 1998
Pierre Ronsavallon – “La contre-démocatie: la politique à l’âge de la défiance”, Éditions du seuil, Paris, 2006.