Proust tinha em madame de Thebes uma respeitável “checadora” da realidade. Era ela quem lhe trazia a versão confiável dos fatos e das fofocas do Ritz. Se ela não lhe relatasse o feito, é porque o fato não acontecera. Além do mais, madame Thebes tinha poderes premunitórios: antecipava com previsão e segurança o que estava por acontecer.
Contratei os serviços de Deleterious por recomendação do meu compadre Hélio Barros, homem de grande discernimento, possuído de muita coragem, dado que as suas forças ancestrais derivam do Riacho do Sangue, dos Guedes, Pereiras e Campos Barros.
Contava em constituir uma madame de Thebes a meu serviço, no papel de interlocutora com a realidade. Descobri, entretanto, que Deleterious não cumpre a sua parte, para a qual foi contratado.
Tem mania persecutória, acha que na minha companhia terminará com uma argola corretiva no tornozelo, castração preventiva de más intenções inconfessáveis. Teme pelos impulsos de democratas iluminados por teorias afirmativas e identitárias. Ademais, pergunta muito, dissente e contradiz e pretende ter opinião própria — e externá-la.
Deleterious revelou-se um abusado querelante.
Deleterious deu-se a ler aquela turma da Escola de Frankfurt, descoberta por Ciro Gomes nas suas gradas leituras harvardianas. Não pára, desde então, dominado pelas revelações que garimpou nesse acervo de sabedoria, de teorizar sobre tudo e, pior do que isso, de pronunciar-se sobre as querelas remanescentes.
Descobri entre os seus guardados recolhidos a uma velha bolsa, um clássico do patriotismo verde-amarelo, “Porque me Ufano do Meu País”, do temível Conde Afonso Celso. Temi pelo pior. Pressenti o risco que se anunciava.
Teria o nosso sábio Deleterious se convertido ao bolsonarismo, sem que eu percebesse os sintomas? Ou seria ele um agente do Zé Dirceu, infiltrado entre pastores pentecostalistas? Bem que eu andava desconfiado da moto que ele comprara de um ex-motociata, após a sua rendição à senhora Tebet.
Disse-lhe agora que, enquanto o ministro Fux permanecesse na FIEC, tratando da segurança jurídica que assola o País, em tratativas teóricas com os nossos empresários ditosos, não permitiria que saísse às ruas. Com cinquenta desses empreendedores sob suspeita de pensamentos e persignações telefônicas anti-democráticas, e devendo essas criaturas desembolsar multas vultosas por desvio de opinião, passei a temer pela sorte do bodegueiro discrepante da rua Conde d’Eu e do que restará das operações realizadas nas suas contas do PIX. Pus-me a vigiar os arroubos de Deleterious. Por prudência aconselhada.
Nada, entretanto, é inteiramente ruim ou de todo danoso. Já que os governos mostraram-se incapazes para realizar a distribuição de renda entre os brasileiros, eis que estes ajustes poderão ser feitos por via judicial. Nem a Marx ou a Lenine ocorrera essa possibilidade alvissareira. Aliviar o caixa dos ricos para alimentar os pobres parece hoje operação trivial. Privar os empresários recalcitrantes dos seus ganhos em benefício da democracia — a fórmula redentora.
Preveniram-me que o vírus do “new constitutionalism” é altamente contagiante e, por cima, contagioso, espécie de pandemia arrancada aos graves exercícios de exegese dos doutores da lei. Receei por Deleterious. Temi por mim. Antevi, assustado, randolfos, calheiros e muitos humbertos transfigurados em constituintes a incorporar teorias e preceitos que nos levariam à mesa para animadas reflexões filosóficas com Caramuru.
Sob o peso da chibata corretiva dos homens da lei e dos “checadores” do PSOL, serei capaz de confessar tudo, até os mais inocentes impulsos subversivos que houvessem sobrevivido às catarses patrióticas de 1964. Temo que, embotado por privação momentânea de caráter, possa arrepender-me até mesmo das ideias que nunca acalentei…
Restaria, para concluir este BO democrático (também identificado como “boletim de ocorrências”), lembrar a sabedoria de um velho comissário do povo, Beria: “fale-me das ideias de uma pessoa, e direi os seus crimes…”
O risco que as palavras e as ideias representam não está nos propósitos de quem as pensou e escreveu. Mas nas intenções de quem as lê e delas constroem as novas revelações, as que vão parar no “scrip” dos salvacionistas.