DE REPENTE… NÃO MAIS QUE DE REPENTE…

De repente, encontrava-me ali, na faixa lateral – à época, batizada pela galera mais inflamável como “zona morta” – do amplo e então febricitante (o esfuziante jogo de luzes – é o novo! – ampliava tal sensação) salão de danças do BNB Clube, a alguns passos do palco, elevado em torno de um pouco mais de um metro em relação ao piso, na companhia sempre agradável da minha eterna parceira e da sua prazenteira irmã mais velha e nosso incansável e vigilante Cupido, agora usufruindo das primícias celestiais a que fez jus por méritos, após uma septuagenária existência honrada e digna, seguida de um purgatório de sofrimento e dor.
Assistíamos, à plenitude das nossas disposições físicas e espirituais para tanto, ao show – ou melhor, ao inebriante espetáculo de irresistíveis músicas para dançar, para rebolar, para gingar – do carioca e flamenguista Jorge Ben que, ainda não incorporando o Jor sugerido por celebrada numeróloga, navegava com desenvoltura pelas vanguardistas ondas da Bossa Nova, da Jovem Guarda e da Tropicália, influenciando-as e deixando-se por elas ser influenciado. Era, sem dúvida, um “showman”. E a eclética banda do Zé Pretinho, que chegava sempre para animar a festa, misturando o som percutido e compassado do bumbo ou zabumba com o ressoar vibrante e estridente do violino, e as variações rítmicas e o ruído característico e marcante do couro retesado e platinelas (guizos) do pandeiro, e o ronco ritmador da cuíca, e o agudo puro e aveludado do trombone, e o chacoalhado do ganzá, e a versatilidade e potência sonora da guitarra e as vibrações e ondulações acústicas do violão, atacou de “Sou Flamengo e tenho uma nega chamada Tereza” (bordão de “País tropical”). Inebriante. Extasiante. Estonteante. Quando tudo parou, madrugada adentro, restavam em nós, além do saudável deleite da diversão sadia com pessoas do mais benquerer, o cansaço, o suor e a prazerosa satisfação do corpo e da alma. No aconchego do lar, tudo logo seria recolocado em seus devidos lugares.
De repente, encontrava-me aqui, na minha ilha de criação, espaço estratégico por mim reservado no hall de entrada da minha casa, a poucos passos da rede de varandas tantas vezes referida na minha prosa – ninho que tão generosamente me acolhe nos meus cansaços físicos e mentais; que tão magnanimamente me embala nos meus sonhos e até nos pesadelos; que me acalma nos meus incontornáveis acessos de incontidas assincronias com as condições e exigências impostas pela Vida (sempre me rendo a elas, cabe frisar, e, certamente, por isso tenho sobrevivido, com resiliência e sabedoria, até a tempestuosas intempéries); que me estimula quando a preguiça ou indisposições de matizes vários, próprias de quem alberga comorbidades clássicas, mostram-se capazes e dispostas a me empurrar ladeira abaixo, como se bêbado incorrigível fosse; e, principalmente, que muito me apraz nos recorrentes e calorosos colóquios de simbiótica empatia com a sempre rigorosa e, não raras vezes, inflexível “musa minha em que me inspiro”, vindo até mim sem se anunciar e sem me prevenir e indo-se embora sem se despedir, invasiva e sorrateira, translúcida e soberana, cavalgando ventos mornos e intermitentes que me açoitam prazerosamente o já combalido corpo e açulam irremediavelmente a irrequieta alma.
À minha frente, assenhoreava-se de mim a luminosa tela do ágil e insensível notebook, que me abre portas e portos, que nunca demonstra cansaço nem manifesta sensações ou intenções, quaisquer que sejam, sempre me incitando a navegar por virtuais mares useiros e vezeiros na arte de desviar minha nau da rota pretendida, às vezes por inesperados tsunamis ou turbilhões, outras por bonanças e calmarias; afinal mais que provado está ser a terra redonda – plana apenas na cartografia – e em constantes movimentos que lhe dão equilíbrio orbital. Tudo na mais perfeita ordem. Quiçá!
E, por algum tempo, não sei precisar quanto, não percebi o que acontecia ao meu derredor, no meu entorno. Apenas navegava. Sem rumo e sem destino, deixava – “zecapagodinhonamente” – que a Vida me levasse.
De repente, não mais que de repente, assustou-me um forte e persistente odor de passado longínquo; nada que me afetasse as já desprotegidas vias aéreas, sempre dispostas a reagir, na forma de praxe, aos invisíveis e hostis agentes alérgicos, os ácaros na “pole position”. Por puro reflexo, dirigi um olhar de esguelha para um lado e para o outro. E o que vi? Comodamente sentadas em poltronas de vime com assento e encosto almofadados, inertes e silentes, imperturbáveis e inofensivas, ali estavam duas mulheres que, de alguma forma, tiveram as suas respectivas linhas do tempo cruzando com a minha, no curso da adolescência, embora sem protagonismo que justificasse tão insólitas visitas.
À direita, encarava-me com olhar perturbador e cruzamento de braços de puro enfrentamento, a menina-moça Tereza do Zé Carneiro, cujo perfil físico pouco oferecia de especial, carente de atrativos, merecendo destacar apenas a exuberância e o negror do cabelume, com grossos e longos fios que se esparramavam pelas costas e desciam até a altura das ancas nada protuberantes, além de encobrirem os largos ombros, o que, certamente, concorria para a palidez facial; o busto avantajado em que pontificava um par de seios abundantes, dois montes abaulados quase sem vale de intermédio, os quais, no dizer depreciativo da plebe ignara e rude, sempre chegavam ao destino antes mesmo que a dona; e o caminhar ligeiramente cambaleante a revelar um quase imperceptível arqueamento dos membros inferiores, fenômeno que os maledicentes rotulavam grosseiramente de “andar de pata”.
À esquerda, consternava-me, em sua languidez enfermiça, tendente à prostração, à morbidez, a moça-mulher Tereza Caçota, cuja fealdade nem o raro sorriso enigmático e de repuxo conseguia amenizar, convindo ressaltar a sua indescritível magreza, lembrando uma tábua de passar roupa – sem relevo algum no colo e nas ancas, ou seja, nada de seios nem de nádegas –, encapsulada em vestidinho de tecido ordinário, já desbotado pelo uso, que descia até o meio das descarnadas pernas; o rosto com rugas em abundância a revelar uma existência de sofreres e carências; bem como, no alto da cabeça pequena, um emaranhado de cabelos curtos e desgrenhados, desprotegidos de qualquer tipo de trato, incluindo o natural pentear-se. Aduzo que não consigo recuperar a razão do cognome (traço físico, atitude ou costume, por exemplo), certamente não restrita a ela, até porque identificava todos os outros membros da família – pai, mãe e irmãos – dos Caçotes.
Sobre cada uma delas, tenho um caso a narrar. Antes disso, porém, impõe-me o registro de que o talentoso baiano Dorival Caymmi surgiu na tela luminosa do notebook, simplesmente cantando, ao seu estilo exemplarmente melódico, a sua “Modinha para Tereza Batista”, da qual ora recolho estes versos: “Me chamo Siá Tereza / Perfumada de alecrim / Ponha açúcar na boca / Se quiser falar de mim (…) Para saber de Tereza, meu bem / Pergunte primeiro a mim / Tudo o que sei de Tereza / Conto tim-tim por tim-tim”. No fecho, o letrista apela para a onisciência divina, contradizendo-se propositadamente: “Mas para falar de beleza / Para saber de Tereza / Só mesmo nosso Senhor!”. A Tereza de Caymmi pouco ou nada tem das… das duas que, neste texto, considero exclusividade minha.
Pois bem. A jovem da direita vivia em quase clausura domiciliar, com liberdade restrita, sob o rigoroso controle dos pais; ele, dono de bodega instalada na dependência de entrada da modesta moradia da família, com balcão de madeira e mais prateleiras que produtos expostos à venda, cujo carro-chefe eram os tijolinhos de coco ralado e calda de açúcar, de cor branca e de forma em quadrilátero, e as cocadas de coco ralado e calda de rapadura, de cor marrom e esparramadas, sem formato padrão. Tratava-se de produção caseira e exclusiva do seu Zé Carneiro que se esgotava tão logo saía do forno e tabuleiro. Costumava pôr em prática uma mania pouco recomendável para quem lida com alimentos. Ao final das tardes, o sol já em curvatura declinante, punha a Tereza sentada em tamborete na calçada, acomodava-se em outro no batente frontal da diminuta área de atendimento à freguesia, recostava a cabeça da filha em uma das suas grossas e longas coxas, e catava, no vasto cabelume da jovem, os piolhos e lêndeas que, uma vez aprisionados, eram espremidos entre as unhas dos seus avantajados polegares. Todos assistiam à desagradável cena e o recriminavam por isso, mas os tijolinhos e as cocadas jamais deixaram de ser consumidos. Não por esse motivo.
Tereza era fã incondicional do Jerry Adriani, um dos cantores da Jovem Guarda, movimento brasileiro de rock também conhecido como iê-iê-iê, com raízes no fenômeno Beatles, com divulgação nacional através de programa televisivo de igual nome nas “jovens tardes de domingo”, e sabia de cor a letra de todas as canções lançadas pelo ídolo. E as cantarolava com voz em desafino, de taboca rachada, principalmente a de preferência de todas as fãs: “Doce, doce amor / Onde tens andado / Diga por favor”. Nutria por ele uma paixão de adolescente que resvalava para a idolatria ao extremo. Quando os empresários de Jerry incluíram Baturité na turnê pelo interior do Ceará, aí pelos últimos anos da década de 1960 ou do início da de 1970, a notícia não apenas mexeu com os sonhos da adolescente de vasta cabeleira, mas também lhe trouxe, dado haver decidido não perder a única oportunidade de estar o mais próximo possível do seu venerável cantor, alguns problemas de difícil solução, quais sejam: arranjar dinheiro para comprar o ingresso, vestir-se com figurino adequado ao evento e driblar a vigilância dos pais na hora da fuga para a Quadra General Mário Ramos, na Praça da Matriz, onde o show se realizaria. Não me perguntem, ó diletantes leitoras e leitores, como conseguiu satisfazer tais exigências porque jamais me foi dado desvendar esse mistério; só sei que lá ela esteve, inclusive sendo agraciada com convite para subir ao palco e premiada com beijo na testa dado pelo ídolo, o que a fez quase desmaiar sob calorosos aplausos de um mundaréu de gente. Ao retornar da aventura, ainda em êxtase, exalando felicidade por todos os poros, o pai a acolheu com a justa e merecida, segundo ele, recepção: uma sequência de castigos – naqueles tempos se revestiam de legitimidade – que variaram do então tradicional ajoelhamento sobre grãos de milho até a sova ou peia de cinturão. As marcas no corpo valiam, para ela, como lauréis pela intrepidez, ousadia, audácia no enfrentamento de todas as barreiras que, rompidas, uma após outra, deram ao fato contornos de façanha. E ela era apenas uma adolescente, numa época nada favorável a esse tipo de heroísmo em prol da realização de um sonho.
Oportuno é, a meu estrito pensar, recorrer à poesia de Fernando Pessoa, mais precisamente a estes dois versos de múltiplas referências: “Valeu a pena? Tudo vale a pena / Se a alma não é pequena”.
Quanto à mulher da esquerda, convém aqui salientar que compunha uma unidade familiar de parcos recursos que, sob os atuais critérios de classificação na pirâmide socioeconômica, certamente se incluiria na categoria de extrema pobreza, um pouco abaixo ou um pouco acima da linha superior de demarcação da faixa; ademais, morava em casebre na íngreme rua do Alto do Bode, com acesso pelo lado da via férrea. Tereza compensava a magreza e a fealdade com um exemplar espírito de luta, uma peculiar disposição para o trabalho. Não se curvava às agruras que a Vida lhe impunha cotidianamente; muito menos às pilhérias, zombarias e caçoadas que lhe dispensavam alguns desalmados gozadores.
Toda a família dispunha, a rigor, de apenas uma fonte de renda: a venda de frutas da terra – tangerina, uva, sapoti, caju, ciriguela, manga, banana, goiaba – a uma dispersa freguesia: os passageiros de trem em paradas curtas, na plataforma da estação ferroviária do Putiú. Tratava-se de atividade de bom retorno, mas que muito exigia de dedicação, competência, habilidade e arrojo. Em tal mister, era comum ver os Caçotes – Tereza entre eles – descendo pela avenida Dom Bosco e transportando no cocuruto protegido por rodilha de pano feixes de taboca extraída nas encostas da serra, em áreas próximas à Escola Apostólica dos jesuítas e até um pouco mais adiante, a ser usada como matéria-prima no ofício de produzir cestinhas em diversos tamanhos, de acordo com o tipo de fruta que nelas seria acondicionada, cujo acabamento se dava com o entrelaçamento de cordas de salsa-brava (“ipomea asarifolia”) ressequida.
Numa tarde de sábado, enquanto aguardávamos – eu e amigos em comum – o término do expediente do Jaime, auxiliar de agente na função temporária de conferente, já prontos para o tradicional racha no campo da Manga, em área contígua à do Matadouro Público, presenciamos uma cena protagonizada por Tereza que bem revelou a têmpera daquela mulher simples, sofrida e aparentemente frágil. Sentada no piso rústico de cimento e pedra do calçadão do Armazém (anexo à estação), setor de despacho de encomendas para transporte em trens de carga, ela se entretinha preparando cestinhas de cheirosas e adocicadas tangerinas, as quais, em acirrada disputa com vendedores outros, de produtos os mais variados – do café com tapioca ou fatias de bolo ou nacos de macaxeira a rodelas de cana ou de abacaxi –, numa confusão de tabuleiros alumiados pela luz bruxuleante de lamparinas e numa mistura de vozes barulhentas –, ofereceria aos passageiros do trem das sete da noite que, vindo de Fortaleza, logo seguiria com destino ao Crato.
Um bananicultor, lá das bandas do pé da serra, após concluir os procedimentos de remessa de milhares do produto para cidades do centro-sul do Estado, ao ver o proceder de Tereza, intrigou-se com um detalhe: antes de arrumar as frutas na cestinha, ela usava o joelho para empurrar para dentro o fundo de cordas de sala-brava. Para ele, aquilo significava um gesto nada recomendável, porquanto reduzia a capacidade do recipiente, algo que somente a beneficiaria. Ele, então, perguntou-lhe:
– Tereza, amiga, quantas tangerinas você põe em cada cesta?
E ela, tranquila e calma, respondeu-lhe:
– Dez.
– Mas aí caberia uma dúzia. – Retrucou o homem, com ar de advertência.
– Cabe não, senhor. – Agora, já a atenção voltada exclusivamente para o seu interlocutor, ela mostrou-se taxativa na resposta.
– Ora, mulher, quando você empurra o fundo da cesta…
Tereza não esperou que o ora opositor gratuito concluísse o questionamento. Pegou uma das cestas na pilha das ainda com o formato original, ofereceu-a ao bananicultor com a seguinte proposta:
– Se o senhor conseguir colocar doze tangerinas nela, ela será sua e de graça.
Várias foram as tentativas. Em nenhuma delas, ele obteve o resultado que pretendia. De sete a nove, o seu desempenho foi, no mínimo, frustrante. Não lhe coube senão esta honrosa saída:
– É, Tereza. Não sei fazer como você faz. Me desculpe por ter atrapalhado o seu trabalho.
E a Caçota apenas sorriu aquele sorriso de repuxo, incapaz de minimizar a sua natural fealdade. Ocorre que a sua beleza se preservava no invisível. Mantinha-se no recôndito do ser, no âmago, na alma. Pelo olhar de soslaio que dispensou ao homem, acho que teve vontade de dizer, mas não disse: “Só sabe mesmo ensacar banana…”
(…)
E as duas – a menina-moça e a moça-mulher – simplesmente sumiram… Num sopro do presente, desapareceram. Como vieram, foram-se. Assim… de repente… não mais que de repente.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.

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Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.