Walter Benjamin delimita entre dois de seus textos, O autor como produtor e Que é o teatro épico?, um problema que bem mereceria uma releitura: a dialética existente entre técnica literária e orientação política. Essa relação o permitia distinguir o que, à época, chamava de “escritor burguês”, mais diretamente ligado ao entretenimento, e o “escritor progressista”, que reconhecia ao menos dois problemas: i) a tensão com o regime capitalista não era dada primordialmente entre este e a inteligência, e sim com os proletarizados, todos aqueles que foram destituídos dos meios de gerir a própria vida; ii) que todo autor é também proletarizado, produtor, é um destituído dos meios para a elaboração do seu ofício.
Essa retomada teria um bom encaminhamento na polêmica entre Rachel de Queiroz e Caio Fernando Abreu no programa de TV Roda Viva exibido em 1991. Ali, Rachel, ainda que sua técnica literária estivesse atenta às contradições regionais, como no caso do romance que a projetou no mundo literário, O Quinze, participando com ele da chamada geração de 30; ainda que atenta à carência de “críticos profissionais” que pudessem alargar o sentido das produções literárias com suas reflexões; deixou-se escorregar no ponto da orientação política, em que, amiga de Castelo Branco, foi apoiadora do golpe militar que se desdobrou numa ditadura civil-militar de 1964 a 1985. De um lado, Rachel, com os impasses que já apontamos; de outro, Caio Fernando Abreu, um perseguido pela ditadura civil-militar. E então o problema da orientação política vem à tona, e junto com ele um impasse que teve de ser conciliado para que o debate prosseguisse. Esse pode ser considerado um ponto para contribuições futuras, porque ainda está ressoando aos ouvidos o termo Senhora e ele impele a algum apontamento.
No Apelo de Dalton Trevisan, Senhora é um significante mestre, deslocado de seu lugar, é um objeto-sujeito a produzir sentido e seu afastamento obriga o narrador a elaborar um luto, que ele não consegue. Os objetos da casa estão todos fora de ordem, perderam o sentido norteador, o clássico ambiente da figura da melancolia, que em geral diz respeito a um luto não elaborado. Na dialética do desejo entre senhor e escravo (Hegel), na metafísica de amante e amado (Platão), a figura masculina apresentada por Dalton não consegue elaborar o perdido, o que deixa confundido o seu coração, sem saber ele, ainda, que nada pode o olvido contra o sem sentido apelo do não: “Venha para casa, Senhora, por favor”, insiste o narrador.
Senhora é o título de um clássico romance de José de Alencar, seu enredo é interpretado por Roberto Schwarz em seu livro de ensaios Ao vencedor as batatas, romance esse que figura nos ensaios de Schwarz como antecedente do que viria a se consolidar na prosa de Machado de Assis: a figuração literária da dialética senhor-escravo (dependência e autonomia) em solo periférico, brasileiro, no qual o favor medeia de cima a baixo as relações sociais, um ao mesmo tempo aparente e real contrassenso frente aos ideais europeus de liberdade, igualdade e autonomia, configurando, no máximo, um amálgama chamado por Schwarz de paternalismo esclarecido, uma conciliação atroz entre dependência e liberdade, entre paternalismo e esclarecimento.
No romance de José de Alencar, Senhora é como o autor apresenta a transfiguração social da personagem Aurélia Camargo após receber uma herança do avô, o que acaba por reconfigurar a sua relação afetiva com o personagem Fernando Seixas, aquele que num primeiro momento, enquanto Aurélia era ainda moça pobre, a havia rejeitado (mesmo que a amasse) na tentativa de casar-se com Adelaide Amaral, então rica mulher da sociedade carioca. Não seria o caso de estender todo o enredo do romance, mas de ir ao seu ponto central: após o recebimento da herança, Aurélia, a Senhora, envia secretamente a Fernando Seixas um convite de casamento, com dote, que culmina na revelação de que a relação entre ambos, a partir daquele momento, de amor passaria a um mero contrato.
O amor cede ao orgulho e a relação entre ambos se dá numa estrita relação contratual, em que Fernando Seixas acaba por submeter-se como forma de, realizando o desejo de Aurélia, redimir-se perante a amada, mostrando a que ponto pode ir a objetificação mútua entre pessoas nesse mundo de contratos e propriedades. É mediante o trabalho, a figura do trabalho assalariado aparece naquele momento como lugar de saída da dialética favor-arbítrio, como lugar de responsabilidade e construção da autonomia à maneira burguesa, que Fernando Seixas consegue quitar sua “dívida” (material e moral) com Aurélia, abrindo assim a possibilidade cômica (no sentido de desfecho positivo) de uma reconciliação do casal. Senhora é também Lucíola, cortesã bem-sucedida na vida carioca de então que, no entanto, precisaria de um momento apenas para ela.
A grande questão é que, neste mundo capitalista periférico, estamos a todo momento tendo de lidar com as tensões entre o ideal, seja ele amoroso, de liberdade, autonomia, felicidade, emancipação, e a dura mecânica dos contratos, das posses e propriedades, do lugar que se ocupa, da máscara que se veste no baile de máscaras mercantil (com a Morte Rubra de Poe à espreita) amalgamado com todo tipo de servidão, dependência pessoal, humilhação etc. E vejam só, no necrológio dos desiludidos do amor, a “Única fortuna, os seus dentes de ouro/ não servirão de lastro financeiro/ e cobertos de terra perderão o brilho/ enquanto as amadas dançarão um samba/ bravo, violento, sobre a tumba deles”.