Já está passando do tempo de um freio de arrumação retórico no Brasil. Semântico, talvez fosse mais adequado para que pudéssemos entender o que se passa neste desolado país de oportunistas.
Para começar esse alisamento de conceitos e de entendimentos racionais, poderíamos considerar dois registros do léxico desta língua inculta e bela, dois substantivos: censura e guerra civil, desordem social e totalitarismo, a propósito.
De uns tempos para cá, desde que os homens das leis e os inspirados juristas que nos cercam com a sua incomensurável cultura, alguns termos de uso corrente amoleceram e perderam a consistência lógica. Um deles, “censura”. O outro, guerra civil”, “desobediência civil” ou “insurgência social”.
Censura chegou-nos ao entendimento como controle da manifestação da palavra, redução do conceito de verdade, aprisionamento da livre expressão. Recurso muito empregado, como ordem e disciplina, nas entidades religiosas — e na política. Et pour cause.
O que pareceu à esquerda, nos idos de 1964, atentado criminoso aos direitos da palavra e da expressão, já não guarda os mesmos desvios autoritários de antanho. Agora , a limitação dos direitos de expressão e da opinião política ganham o perfil de uma ingente batalha cívica contra a mentira, a democracia e o Estado de direito. Monta-se uma cruzada de correição contra os devios da verdade, sempre que alguém discorda da vontade do governo e dos seus agentes diretos ou indiretos.
A desconstrução institucional, a banalização de atos ilegais criaram, nestes tempos incertos, um elevado grau de insegurança jurídica e administrativa, nos meandros do governo e nas relações sociais, cujas consequências começam a ser percebidas no âmbito dos mecanismos do Estado quanto ao reconhecimento dos direitos dos brasileiros.
O desrespeito pela opinião e pelo direito de que ela seja expressada sem constrangimentos fez crescerem a dúvida e o temor em relação a liberdade que, em princípio, podemos encontrar no exercício da democracia.
É neste clima confuso de liberdades atropeladas e de direitos escamoteados, em nome da lei e fundamentado na sua força, que uma acepção desconcertante poderia ser levada em consideração. A guerra civil (guerra de narrativas controvertidas) ou as alternativas não contempladas pela lei, como a desobediência civil — a guerra de versões amputadas — dispensam armas e refregas de graves consequências para a vida dos revoltosos. O que se instalou pelo país, num processo tentacular de efeitos em cadeia e omissões, modulado pela permissividade de uma cultura jurídica flácida, só fortalecida sob os ímpetos do totalitarismo, é o caos sintomático de um desregramento perigoso das relações sociais e políticas em um país no qual estes valores não constituem, a rigor, manifestações aceitas de senso comum.
Na minha infância, leituras distraídas de livros para aquela idade contavam a história de um gigante amedrontador. A fera prendia as suas vítimas, crianças como se contava nessas narrativas, enquanto as vigiava. Olhos fechados, a disforme figura tudo enxergava. De olhos abertos, nada via.
A censura encarna esta potestade do mal. Quando fecha os olhos, ganha forças para controlar tudo à sua volta. De olhos abertos, poderá adivinhar o que irá acontecer… Para esse serviço subalterno e porco tudo é útil: as leis, a interpretação das leis, as provas sibilinas, as circunstâncias presentes, passadas e futuras, e a capacidade de julgamento das causas obtusas e incompreensíveis ao exame do julgador.