A crise da democracia dronizada, por Rafael Silva

A “dronização da democracia” ocorre em tempos de generalizada crise dos fundamentos e convicções acrisolada na efêmera modernidade. Presa, reproduz a sentença de Frei Betto ao afirmar ao afirmar que “hoje, não há nada, nem ninguém mais aviltada que a democracia”. L Boff, observa que o grande risco consiste nessa estagnação. Para ele, a oportunidade da crise reside no sucessivo processo de purificação e libertação. Isso começa por compreender, a democracia enquanto invenção social tão importante quanto à tecnologia e o fogo. Por certo, é o instrumento mais eficaz para enfrentar o aprofundamento da crise civilizacional agudizada na representação política e partidária.

A democracia foi reduzida aos apelos do mercado. Molestada pelo capitalismo contribuiu para 8 afortunados alcançar metade da riqueza mundial. Segundo a OXFAN, sua fustiva tarefa escamoteou a dura realidade de diversos povos e comunidades tradicionais. Adormeceu os sintomas de ecossistemas destruídos. Naturalizou relações politicas escusas caracterizadas por economias que tripudiaram da inteligência alheia. Ao arrepio da coletividade a democracia viu-se despolitizada naquilo que mais lhe conotava brilhantismo, a participação comunitária. Arendt chamou isso de “Banalidade do Mal” dada pela incapacidade das pessoas fazerem seus próprios juízos.

No Brasil a democracia, sofreu remendos corriqueiros. Já estamos na 5ª constituição, inúmeros artigos e incontáveis emendas. Em pouco mais de cem anos de república contamos apenas em uma mão a quantidade de presidentes eleitos que conseguiram levar a cabo seus mandatos (Juscelino, FHC, Lula). Enfrentamos duas grandes ditaduras, a última durou mais de duas décadas. Os modelos administrativos adotados optaram pelo desenvolvimento literal da sociedade. Tomou-se o caminho do crescimento irresponsável a partir da emissão de títulos públicos, e juros em moeda corrente. Suportamos inflação de mais de 3 trilhões entre 1980 a 1995. Quantos planos econômicos foram necessários? Quantos maniqueísmos foram ajustados para driblar as famigeradas crises de demanda; oferta ou estrutural? No linguajar popular, a crise das remarcações de Sarney, e os arroubos do Collor. FHC se mostrou amargo, não porque privatizou, mas porque conduziu a máquina pública ao vácuo estratégico. Houve acerto no seu plano? Talvez seus méritos consistiram em afastar os excessos dos planos anteriores. Desmanchar seus gargalos. Mas a didática do plano real testava a inteligência alheia, num só dia tivemos três moedas. O fato é que convenceu! A mídia, o mercado, mais principalmente ao grande público. Venceu porque sua equipe de economistas conseguiu localizar a crise longe do entendimento do grande público: na sala de estar do sistema financeiro. O fez por meio de elevadíssimas taxas de juros (48% a.a). O rentísmo descobriu a edulcorada jabuticaba que era o Brasil. Diante do cenário economicamente controlado, Lula assumiu o poder dizendo que não era de esquerda. Teve que escutar do seu predecessor os limites do cargo “um presidente manda menos do que imagina”. Eram os tempos das grandes corporações que viam seus lucros crescerem exponencialmente via taxa de juros, debentures públicos, e espoliação da classe trabalhadora. Paradoxalmente foi nesse governo que se viu organizado um modelo interessante de distribuição de renda direta, apesar de ínfimo quando comparada as distribuições aos banqueiros. Acesso ao ensino superior teve sua importância. Mas os avanços na reforma agraria foram pífios. Os movimentos populares, cooptados, anuviou o debate em torno do poder popular tisnando a “democracia dronizada”. O povo nunca esteve tão próximo ao poder, mas assimetricamente nunca esteve tão longe das reais decisões. Os financiamentos das linhas brancas e dos automóveis adormeciam a população à grave crise que se avizinhava.

Dilma assumiu o palácio do planalto. Maquiada pelo feminismo bem elaborado de João Santana. A dama de ferro de Lula apresentou-se com perspectivas técnicas acentuadas. A segurança das massas deu-lhes tranquilidade para correr riscos eminentes. Inclusive arquivar Maquiavel ao escolher Michel Temer como parceiro de chapa. A presidenta tentou se descolar da figura imagética de Lula. Personalizar a política econômica a partir da redução das taxas de juros reais (taxa Selic) associada ao aumento real dos juros dos bancos públicos. Num sobressalto a Caixa Econômica Federal cresceu mais do que o Bradesco. Mas a grande ousadia foi liderar a fundação do banco dos Bric’s. Sobrou habilidade gerencial e faltou visão política à carta de Fortaleza. Ninguém no Itamaraty para dizer que o sistema não aceitaria?! Onde estava a diplomacia para informar que as relações internacionais não engoliriam competição real das economias periféricas? Inaceitável!

A democracia a distância mata! Os guetos institucionais e os palácios abrigam conchavos e compadrismos insuportáveis. Ao caminhar por lados opostos a Justiça e direito oferece o recrudescimento da moral e mecanização das instituições, enfim paralisa os povos. Parte da mídia e do judiciário alterna-se na seletividade, numa soma de ganho zero. À distância, a democracia da Casa grande apresenta um juiz com partido e o pobre sem justiça.

Para superar a “dronizada” democracia é preciso compreender que as eleições de 2018 não podem sozinhas significar uma saída. Para o professor e cientista político Juarez Magalhaes da UFMG, nada pode ser mais desmobilizador do que a pseudo-esperança das próximas eleições. Mas por quê? Porque, apesar de entoarmos gritos legítimos de Diretas já! a agenda da democracia não está nas mãos dos partidos ou dos setores organizados. Está nas mãos das publicidades que se especializaram em repetir mentiras tantas vezes fossem necessárias para parecer verdade. A democracia está reduzida a eficácia de algoritmos a direcionar informações, dronizada por espaços efêmeros e pelos bytes das TIC que fazem uma profunda confusão entre razão e emoção; O cidadão se ver aviltado no mais sagrado intimo do seu discernimento, e o debate eleitoral é redução imediata do processo.

Qual o caminho? Se eu estivesse escrevendo anos atrás, diria que o caminho passava por descolonizar a democracia. Tirar-lhe a sua capa patriarcal e denunciar o novo feudo: as corporações! Escrevendo hoje, na segunda década do Século XXI, eu digo para a juventude que precisamos “desdronizar” a democracia! Na prática exige conjugar revolução com política. Como? Boaventura indica “democratizar a revolução e revolucionar a democracia”. Democratizar a revolução é diferenciar vingança de justiça. Revolucionar a democracia é ampliar os acessos e garantias ao bem viver. É inclusive disputar o papel das novas tecnologias. Vencer a desigualdade. Ampliar os direitos humanos e a imponderável ecologia.

Desdronizar a democracia é Parafrasear Carlos Nelson Coutinho ao sentenciar que “democracia é o socialismo sem fim”. É inaugurar um novo pacto, refundado no esperançar da cooperação e da solidariedade. É sair do acrisolamento e aproveitar a oportunidade da crise que pode purificar e libertar.

Rafael dos Santos da Silva

Professor UFC
Doutorando em Sociologia – Coimbra.

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