Imediações do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, final de tarde. Terminada a reunião, preciso voltar para o São Luiz.
Vejo um táxi estacionado cujo motorista, cabelos grisalhos, está conversando ao celular. Me aproximo e pergunto se o táxi está disponível. Ele acena que sim. Entro no veículo, que permanece parado por mais alguns minutos enquanto ele finaliza a conversa.
_ Essa coisa da tecnologia nos obriga a ficar conectados direto – diz ele, ao desligar o aparelho.
Indico o meu destino enquanto o táxi manobra pela rua Almirante Jaceguai, de onde segue para a avenida Pessoa Anta.
_ Veja só, trabalhei 20 anos na fábrica da Antarctica, até ela ser fundida nesse negócio da Ambev. Eu era o cara responsável pelo setor de informática da empresa – revela ele, enquanto encaramos um engarrafamento.
_ Pense num negócio estressante, aquele alí! Rapaz, trabalhar com tecnologia não é mole não. Todo dia você tem que se atualizar, ver o que tem de novo, adequar o sistema, adquirir e aprender a manusear novos softs… Afora as responsabilidades do dia a dia da fábrica, como controle de insumos, cronograma de entrega de mercadoria… É um inferno!
Adentramos na Avenida Alberto Nepomuceno.
_ Quando teve esse lance da Ambev eu já estava saturado desse babado todo e acabei aproveitando um programa de demissão voluntária. Peguei o beco! Juntei a grana que deu pra juntar e fui montar uma livraria lá no Montese.
Eu morei no bairro Montese dos 7 aos 27 anos. Curioso, perguntei em qual rua ele havia montado sua livraria.
_ Ali perto do Colégio Paulo VI, numa rua por trás da caixa d’água, a Damasceno Girão.
_ Sei onde é – comentei.
_ Com essa livraria criei e formei três filhos. Até que o casamento acabou e o negócio também foi por água abaixo. Aí deixei a casa pra mulher, comprei esse táxi e mudei de ramo. Mas aí, pra você ver a ironia da história, veio outro problema. É que antigamente, quando um carro dava o prego, fosse onde fosse, tinha sempre um mecânico por perto para dar um jeito. Já hoje, com esse avanço da tecnologia, esse carro só sai do canto se for com o reboque do seguro, que só leva se for pra oficina especializada! Agora imagine o senhor se esse carro tivesse dado o prego numa corrida que tive que fazer lá pro sertão dos Inhamuns! Eu tava era lascado, pois não ia ter um cristão pra dar um jeito nesse bicho, além do que o reboque só cobre Fortaleza!
_ É, se tivesse acontecido um problema por lá teria sido difícil… – digo, tentando me solidarizar com o imponderável.
_ E aí é que vem a outra ironia da história: eu, que tanto fiz pra fugir dessa porcaria de tecnologia, hoje sou refém tanto do carro como do celular, porque, fora a mecânica, se eu não tiver como usar esses aplicativos com GPS pra chamadas dos clientes, tô ferrado! Dá pra imaginar uma dependência dessas?
O táxi finalmente chega na Praça do Ferreira.
_ E pra completar, hoje, aos 56 anos, virei pai de novo. Se bem que na verdade a bichinha já tem 9 anos, mas eu não sei como vou fazer pra formar ela, porque esse negócio de táxi, com a chegada do Uber, tá indo de mal a pior.
A corrida marca o custo de 14 reais.
_ Foi um prazer trazer o senhor. Se precisar, tá aqui o meu cartão – diz o homem.
Agradeço e me despeço. Observo o cartão enquanto caminho pela praça. É de papel, uma invenção chinesa, consta. Maldita tecnologia.
***
Recepção de um hospital público de Fortaleza. Uma mulher fala ao celular.
_ Alô, pai? Ói, já tô aqui no hospital, viu? Não, pai, num pode vir aqui não, melhor ficar por aí mesmo, nem invente… Hein? Não, não… Pra entrar aqui agora tá a maior putaria. Botaram umas catracas na entrada, só entra agora se for com uma tal de biometria. Hein? Não, tem que fazer um cadastro primeiro, botar a RG, senão num entra não. O que? Não, RG é a identidade, pai, a identidade, aquela que tem a foto antiga do senhor na carteira… Mas eu num tô lhe dizendo que aqui tá a maior putaria? É isso mesmo… E mais, agora só entra de um viu? Se vier mais de um fica de fora, por isso que é melhor o senhor ficar por ai. É verdade, pai, pode acreditar no que tô lhe dizendo, num entra não… Tá tudo diferente, agora a gente bota o dedo na máquina da catraca e aí a máquina diz “Dinamara pode entrar, Dinamara pode sair.” Pense num negócio nojento esse, viu?! Âhn? É, é isso mesmo, tá a maior putaria isso aqui… E a pessoa só pode sair duas vezes durante o dia, sabia? Se sair mais de duas vezes num deixam voltar de novo não… Pro senhor vê como é que tá essa bodega, nem fumar mais pode! Pode uma violência dessa? Mas eu disse foi na cara do capitão: “pois eu vou fumar é no banheiro!” E fui! Ãhn? Sei lá… Só sei que se não podia passou a poder, porque eu é que num vou ficar nervosa por conta da safadeza dos outros… E tem mais: depois de três dias a pessoa é obrigada a refazer o tal cadastro, senão também num deixam mais entrar não… Pode um negócio desse?… Como é? Quem é que vai pagar a despesa? Quem vai pagar é o cabra safado que tá lá, ora essa! Pode avisar logo todo mundo aí que o prejuízo é dele e pode dizer também pra ele mandar logo o dinheiro da minha passagem, porque eu vou pegar o menino e vou embora! Ãhn? Pera aí, pai, peraí que chegou ali um pessoal de reportagem por aqui… Sabe duma coisa, eu acho que vou é aproveitar esse pessoal pra denunciar a putaria que tá nesse hospital, né não? Ora se num vou…
***
Caminho até a guarita do estacionamento onde deixei o carro. Reconheço e sou reconhecido pela atendente que, tempos atrás, me deixou entrar no histórico casario que ficava anexo ao lugar e que foi demolido para a ampliação do estabelecimento.
Fico olhando para o espaço onde ficavam as construções enquanto ela calcula o preço que devo pagar.
_ O senhor gostava daquelas casas, né? – diz a moça, me surpreendendo.
_ Sim… É elas eram importantes… Segundo contam, foram feitas por um arquiteto húngaro que chegou em Fortaleza no início do século passado…
_ O que é húngaro?
_ Húngaro?… É alguém que nasce na Hungria, um país europeu…
_ Ah, tá… E qual era o nome dele?
_ Emílio Hinko… Foi alguém que fez muitos projetos pela cidade, alguns bem conhecidos, como a Base Aérea de Fortaleza, a sede do Náutico…
_ O Náutico eu conheço! Fica ali na Praia do Náutico, bem na esquina, né?
_ Sim, esse mesmo… A história desse arquiteto é bem curiosa… Veio trabalhar aqui e acabou se casando com a viúva de um dos homens mais ricos do Ceará naquela época, chamado Plácido de Carvalho. Foi o Plácido que mandou fazer o Hotel Excelsior, aquele que fica ali em frente a Praça do Ferreira, onde costuma ter aquele espetáculo natalino… Sabe qual é?
_ Aquele que fica cheio de meninos na janela cantando aquelas músicas de natal? Sei sim. É bem bonito!
_ Esse mesmo… O Plácido gostava de construir prédios que se destacavam na paisagem… Um deles foi um “castelo” que mandou fazer para sua esposa, essa que depois se casou com o arquiteto… Ficava ali onde hoje é a Ceart…
_ Ceart? Não conheço… Fica onde?
_ Fica ali na Avenida Santos Dumont… Numa praça que tem várias construções ao redor, os “castelinhos”… Já o “castelo” principal, esse que era a casa do Plácido, não existe mais…
_ Não? O que aconteceu?
_ Foi demolido que nem as casas que ficavam aqui, mas lá foi para dar lugar a um supermercado que, aliás, acabou nem sendo construído.
_ Puxa vida, que coisa horrível! Como é que derrubam um castelo tão bonito para fazer um supermercado?!
_ Também não sei… Mas parece que esse tipo de coisa faz parte da nossa cultura, né?…
_ Pelo visto é mesmo. Deu dez reais.
Faço o pagamento, recolho o recibo e agradeço. Hora de voltar para casa.
***
Tarde de domingo. Subo uma das inumeráveis ladeiras da cidade de São Paulo.
Ofegante, tenho minha atenção despertada por uma casa estreita e desgastada cuja varanda – elevada em relação à rua – está repleta de livros e LPs até quase o teto. Imagino tratar-se de um sebo e desvio o olhar para uma faixa dependurada logo abaixo da janela do primeiro andar.
“Aqui moram duas mulheres com mais de 60 anos de idade, abandonadas pelas famílias e pelos deuses. Precisamos de quem nos queira ajudar, de preferência um advogado ou um jornalista, ou alguém com igual importância.”, diz a faixa.
Só então percebo a música que vem do interior da casa: trata-se de “Summertime”, de George Gershwin, Ira Gershwin e DuBose Heyward. Diminuo as passadas.
“Numa dessas manhãs
Você vai acordar cantando
Então você abrirá suas asas
E voará pelo céu.”
Que assim seja.