CONVERSA DE LIVRARIA

Sobre a arte de escrever em prosa para leitores imaginários: na trilha de  uma conversa interrompida entre Osvaldo Euclides, Mônica Moreira da Rocha e Pedro Gurjão sobre livros, cupins e viúvas aliviadas]

“Não leiam os meus livros, leiam as minhas epígrafes”,

“Sempre acabaremos por chegar aonde nos esperam”,

José Saramago, “O Caderno”, Companhia das Letras,

São Paulo, 2009



Muito do que me propus realizar, nestes tempos de riscos imoderados, fiz no calor da hora, indiferente aos avisos da prudência. Nada me leva, entretanto, a lançar estes impulsos juvenis como débitos à conta de perdas e danos. 

De tantas dúvidas  e hesitações, em face do desafio da escrita, não cheguei, por sorte, ao extremo  das relaxações de Monsieur Jourdain,  personagem de  Molière em Le Bourgeois gentillhomme.

Jourdain desejava escrever uma carta à sua amada para revelar-lhe as chamas que lhe queimavam o coração. Recorre, neste estado d´alma, a um professor de filosofia, tão graves e persistentes lhe pareciam  os seus sentimentos de paixão. Pergunta-lhe o escriba se pretende que escreva uma carta em versos. 

 

“Não, nada de versos!”, responde-lhe Jourdain.

 

O mestre filósofo deduz da negativa a alternativa provável: “O senhor prefere, então,  que seja escrita em prosa?”. 

 

Jourdain, tomado de exasperação: “Eu não quero nem prosa, nem verso!”. 

 

O filósofo explica que  não há outra escolha, a não ser verso ou prosa. 

 

E Jourdain: “Pois, então, diga-me, quando eu falo, `Nicole, traga-me as pantoufas e dê-me a minha touca de dormir´ — é prosa?”. 

Oui, monsieur!”, responde-lhe o filósofo. 

 

Jourdain, em uma explosão de incredulidade: “Há mais de quarenta anos, eu falo em prosa e não sabia!”.


          Pois estamos, felizmente aliviados desta dúvida essencial. Deito, perversamente a prosa que leio sobre amigos diletos e trago a que guardo, empacotada, escrita e anunciada a preço de custo, animado pela amável presunção de que estamos em um evento literário, o lançamento de um livro com a cumplicidade de circunstantes pouco recalcitrantes…  Fazemos vida literária como se fôssemos escritores ou estivéssemos entre escritores.

A crer nas dúvidas compartilhadas por José Saramago, a “página infinita”, a que alude no seu Caderno, eram os espaços largos dos desvãos da Internet que se dispôs abandonar pelo recolhimento solitário do universo da sua escrita.

Não é bem o meu caso, devo admitir: a comparação é indevida e presunçosa. Não pretendo deixar para gáudio dos desafetos mais íntimos a confissão da deserção prematura desta porfia para ser escritor, já que por intelectuais nos reconhecemos todos, por justo merecimento ou por cômoda e esperta cumplicidade

         O campo imenso, sem limites aparentes, da web, cresce aos olhos de Saramago como um grande salão dos passos perdidos, em contraposição aos espaços celebrados da escrita analógica. Pois não é assim, com os mesmos instrumentos de medida que certificamos os vazios a explorar, sem a proteção segura  do papel ou da impressão, confiantes, sobre tubos catódicos em superfície plana? Há quem diga, afirme e acredite que a “blogosfera” será o ambiente definitivo no qual haverá de recolher-se a produção do conhecimento conquistado.

             Não duvido. Por esta razão reservei na Conversa de Livraria algumas páginas  para análises e solertes vaticínios sobre a morte do livro impresso e a sua ressureição eletrônica.


            Conversa de Livraria, em forma de “livro”, na legítima acepção da sua artesania, não haverá de transformar-se no que Umberto Eco haveria de chamar —  antilivro –, assim batizado como os da espécie, o livro que não foi lido

A publicação,  na versão gráfica a que chamaremos de incunábulo, pois ainda os produzimos, desde Gutenberg, avança pela categoria do antilivro, mercê do valor e do respeito que este conspícuo  objeto inspira justamente por não ter sido lido. 

          Durante mais de dez anos, Umberto Eco reuniu, tomado pelo ímpeto sagrado de pesquisador, e por ele tangido em desordenada disciplina, colecionou e ordenou, anotou e dispôs textos  impressos, classificados, dotados, à semelhança dos códices, de páginas, capas e contracapas, salvos de qualquer tentativa intencional ou episódica de leitura. Desta alongada busca, certificou-se Eco que os juízos que se fazem dos textos publicados, da crítica e da curiosidade mal satisfeita sobre os seus autores, resultam dos breves registros das orelhas e das contracapas, em leitura abreviada. Um elevado percentual de informação colhida sobre os livros “não-lidos” provém, assegura Eco, do “ouvir dizer”, de comentário se de oitiva, da reprodução “boca-a-boca” do que se põe como leitura feita. 
Estamos a falar, bem entendido, de livros de prosa e verso, não de teses e tratados e dos escritos deixados pelos sábios e pela douta espécie dos doutores que se reproduz por cissiparidade, em escala ascendente, na universidade. 

Conversa de Livraria incorpora, quando muito, as tratativas correntes, circunspectas, umas, postas em condição de livro; e travessas, outras, saídas do sério da fala empostada de intelectuais

Conversa de Livraria  não peca por ser um texto grave, sisudo, sobre teoria literária; não empina notas de rodapé, a não ser como legítima defesa putativa da autoria do texto… Foge, ao contrário, das teorias e conceitos como o diabo foge da cruz,  tarefa legada, de bom grado, aos mestres da universidade.

Enquadra-se, com permissiva indulgência de julgamento, virtude rara entre sábios, entre livros temáticos, de conteúdo explícito, tendo justamente o livro como motivação central.

Da oralidade à escrita, da leitura ao labor dos copistas, inscrevem-se  por aqui, ensaios e exercícios pouco comedidos sobre os instrumentos de apropriação e registro da cultura, da ciência e da história — e da sua justa repartição por quem deles carece.

Sem perder o foco do livro como construção material e modelagem culta, há textos neste rol de recortes que convergem para uma análise pertinente de obras consagradas e de outras tantas, justa ou injustamente esquecidas.

Tratam estas conversas da persistência da oralidade na transferência do conhecimento e da recusa da criação de um repositório escrito, no qual o  saber correria o risco, segundo alguns pensadores, de engessamento, em impressão criminosa, com prejuízo da memória e da oralidade. Neste contencioso nasceram, como sabemos,  os  scriptorium, como oficina da escrita e dos códices, das torahs e, finalmente, com Gutenberg e os tipos móveis, dos incunábulos

            Recuperam-se, nestas páginas, a produção livreira e a memória das livrarias e dos alfarrabistas do Ceará. Dos  impressos tipográficos aos projetos avançados da arte gráfica, surgem mostras  significativas de experimentos que falam muito bem da inventividade do tipógrafo-impressor nas velhas e usadas impressoras alemãs, muitas delas trazidas em deplorável estado de uso, de seus antigos  usuários. Que fique claro, entretanto, não tratarem-se de registros fidedignos, buscados nos escaninhos públicos da memória cartorial. Correspondem a uma crônica independente, produzida a partir de preferências pessoais, intangíveis, porém verdadeiras, de um aplicado aprendiz alfarrabista.
            Levado por impulso  autocrático incontornável, o autor permitiu-se falar das suas marinhagens como editor, de seu aprendizado, jovem ainda, nas Editoras Espasa-Calpe, de Madri, e do que foi capaz intentar para criar, com régua e compasso, uma editora no Ceará. 

Temos autores, livros e gráficas, só nos faltam editores e projetos editoriais. A Martins Filho e Lúcio Alcântara caberia, entretanto, por justiça, o prêmio da exceção, editores, cada um a seu modo e segundo as suas referências culturais.

De uma taberneira de livros antigos, Antonieta Bezerra, colheu-se uma estória de amor entre fregueses cúmplices de sebos e de compras — e de encomendas de livros raros. Uma terna troca de e-mails revela como foi possível aviar uma história de amor entre leitores de Heidegger, graças à indulgente intermediação de uma alfarrabista.

Abrem-se, nestes dois volumes, atendidas as recatadas injunções, janelas e estantes sobre os segredos da bibliofilia,  como ciência e mania tolerada. Fala-se nestas páginas das viúvas e das térmitas, de como perder livros  ou roubá-los. E de como confiscá-los, em ação revolucionária relâmpago, dos balcões das livrarias do QuartierLatin… 

A questão editorial foi objeto, nestas Conversas, de algumas avaliações pertinentes e necessárias. Pelo conteúdo técnico da abordagem, entretanto, não as incluímos aqui. Fica, não obstante,  o registro das tentativas vãs e aparentemente inúteis para resolvê-la, como se há de ver.  

Tipografias e editoras, livrarias, textos e contextos confrontam-se, prosaicamente, no Ceará, com o desafio da distribuição comercial do livro e de uma estrutura ágil  para a produção editorial. Fora do arco do grande mecenato público, ambicioso porém desordenado,  algumas iniciativas persistem, empreendimentos privados, velas soltas à contra-maré  de um mercado cheio de surpresas. Por tanta persistência merecem ser citados, pela resistência heroica nesta ramo, o Armazém da Cultura e a Fundação Demócrito Rocha.

O livro cearense, publicado no Ceará, parece condenado  à prisão do que é irrelevante, como se fora um mero objeto de  curiosidade. Alimenta, quando muito,  a vaidade dissimulada de quem publica por conta própria ou pela proteção cega ou voluntariamente seletiva do mecenato do Estado. 

O livro comprado e o livro dado fazem a diferença nas escolhas e nos impulsos de guarda dos colecionadores… “Há livros que temos e livros que lemos”, diria Umberto Eco para justificar-se pelo enorme acervo reunido em sua cidade de papel de Milão. 

Livros, compramos os que pretendemos ler. Ou os que pretendemos guardar. Eis que, afinal, nada assemelha-se tanto a um livro de papel quanto uma escultura. A escultura são formas lavradas, como queria Picasso, extraídas pelo cinzel do escultor, nada mais do que o excesso retirado do mármore bruto pelo cinzel do artista. O livro, dos códices ao incunábulos, são os volumes, as formas, a submissão do papel e do texto inscrito à modelagem da encadernação que lhe empresta corpo  e imagem. 

A diferença entre imprimir livros e editá-los desponta dos acertos de escolha bem sucedidos. Como selecionar textos para publicar, em confronto com a política de favorecimento de obras destituídas de valor que domina as gráficas e “editoras” oficiais? Como fugir das listas inquisitoriais fixadas pela ideologia ou pelas razões da dogmática?

À vontade de escrever, impulso de que deverei encher-me de remorsos tardios, não me permitiu renunciar à tentação de explorar a vida cultural no Ceará. Escrever, publicar e fazer “vida literária” — a celebração da intelligentsia — não são certamente a parte mais difícil de contar.  

Deixei para o fim, et pour cause, as rivalidades intelectuais: o saldo dos esquecidos e os “deslembrados”, como vingança exercida contra o talento incômodo, inclinação natural, incontornável e cruel a que se permitem algumas criaturas cultas. O “deslembramento” é a categoria estético-afetiva, ideológica por franca inspiração, na qual se inclui  o esquecimento intencional dos que se atrevem a veicular opiniões contrárias às nossas incontornáveis certezas.

No mais, que valham os textos dispersos: os ”gossips”, as intimidades confessadas, as “stories” bem humoradas, os  perfis intelectuais que enchem Conversa de Livraria, retrato mais ou menos consensual dos encantos e desencantos da vida literária.

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.