Não leiam os meus livros, leiam as minhas epígrafes”,
“Sempre acabaremos por chegar aonde nos esperam”,
José Saramago, “O Caderno”, Companhia das Letras, São Paulo, 2009
Muito do que me propus realizar, nestes tempos de riscos imoderados, fiz no calor da hora, indiferente aos avisos da prudência. Nada me leva, entretanto, a lançar estes impulsos juvenis como débitos à conta de perdas e danos.
Prometi a mim mesmo que pensaria duas vezes antes de publicar mais um livro. Não pensei. Por isso aqui estou, reincidente, a pretender arguir justa causa para o gesto pretensioso, e a contar com a compreensão de pessoas indulgentes para as minhas idiossincrasias literárias.
Das concessões contrariadas, não pude resistir à intermitência das provocações bem havidas, destas que sabemos desaconselhadas, mas que o estímulo adolescente, de divertida parceria, termina por vencer as resistências da idade provecta.
De tantas dúvidas e hesitações, em face do desafio da escrita, não cheguei, por sorte, ao extremo das relaxações de Monsieur Jourdain, personagem de Molière em Le Bourgeois gentilhomme.
Jourdain desejava escrever uma carta à sua amada para revelar-lhe as chamas que lhe queimavam o coração. Recorre, neste estado d´alma, a um professor de filosofia, tão graves e persistentes lhe pareciam os seus sentimentos de paixão. Pergunta-lhe o escriba se pretende que escreva uma carta em versos.
“Não, nada de versos!”, responde-lhe Jourdain.
O mestre filósofo deduz da negativa a alternativa provável: “O senhor prefere, então, que seja escrita em prosa?”.
Jourdain, tomado de exasperação: “Eu não quero nem prosa, nem verso!”.
O filósofo explica que não há outra escolha, a não ser verso ou prosa.
E Jourdain: “Pois, então, diga-me, quando eu falo, `Nicole, traga-me as pantoufas e dê-me a minha touca de dormir´ — é prosa?”.
“Oui, monsieur!”, responde-lhe o filósofo.
Jourdain, em uma explosão de incredulidade: “Há mais de quarenta anos, eu falo em prosa e não sabia!”.
Pois aqui estamos, felizmente aliviados desta dúvida essencial. Deito, perversamente a prosa que leio sobre amigos diletos e trago a que guardo, empacotada, escrita e anunciada a preço de custo, animado pela amável presunção de que estamos em um evento literário… Fazemos, hoje, aqui, vida literária, como se fôssemos, todos, escritores ou estivéssemos entre escritores.
A crer nas dúvidas compartilhadas por José Saramago, a “página infinita”, a que alude no seu Caderno, eram os espaços largos dos desvãos da Internet que se dispôs abandonar pelo recolhimento solitário do universo da sua escrita. Não é bem o meu caso, devo admitir: a comparação é indevida e presunçosa. Não pretendo deixar para gáudio dos desafetos mais íntimos a confissão da deserção prematura desta porfia para ser escritor, já que por intelectuais nos reconhecemos todos, por justo merecimento.
O campo imenso, sem limites aparentes, da web, cresce aos olhos de Saramago como um grande salão dos passos perdidos, em contraposição aos espaços celebrados da escrita analógica. Pois não é assim, com os mesmos instrumentos de medida que certificamos os vazios a explorar, sem a proteção segura do papel ou da impressão, confiantes, sobre tubos catódicos em superfície plana? Há quem diga, afirme e acredite que a “blogosfera” será o ambiente definitivo no qual haverá de recolher-se a produção do conhecimento conquistado. Não duvido. Por esta razão reservei na Conversa de Livraria algumas páginas para análises e solertes vaticínios sobre a morte do livro impresso e a sua ressureição eletrônica.
O volume que lhes apresento, em forma de “livro”, na legítima acepção da sua artesania, não haverá de transformar-se no que Umberto Eco haveria de chamar — antilivro –, assim batizado como os da espécie, o livro que não foi lido.
A publicação, na versão gráfica a que chamaremos de incunábulo, pois ainda os produzimos, desde Gutenberg, avança pela categoria do antilivro, mercê do valor e do respeito que este conspícuo objeto inspira justamente por não ter sido lido.
Durante mais de dez anos, Umberto Eco reuniu, tomado pelo ímpeto sagrado de pesquisador, e por ele tangido em desordenada disciplina, colecionou e ordenou, anotou e dispôs textos impressos, classificados, dotados, à semelhança dos códices, de páginas, capas e contracapas, salvos de qualquer tentativa intencional ou episódica de leitura. Desta alongada busca, certificou-se Eco que os juízos que se fazem dos textos publicados, da crítica e da curiosidade mal satisfeita sobre os seus autores, resultam dos breves registros das orelhas e das contracapas, em leitura abreviada. Um elevado percentual de informação colhida sobre os livros “não-lidos” provém, assegura Eco, do “ouvir dizer”, de comentários de oitiva, da reprodução “boca-a-boca” do que se põe como leitura feita.
Estamos a falar, bem entendido, de livros de prosa e verso, não de teses e tratados e dos escritos deixados pelos sábios e pela douta espécie dos doutores que se reproduz por cissiparidade, em escala ascendente, na universidade.
Conversa de Livraria incorpora, quando muito, as tratativas correntes, circunspectas, umas, postas em condição de livro; e travessas, outras, saídas do sério da fala empostada de intelectuais…
Conversa de Livraria não peca por ser um texto grave, sisudo, sobre teoria literária; não empina notas de rodapé, a não ser como legítima defesa putativa da autoria do texto… Foge, ao contrário, das teorias e conceitos como o diabo foge da cruz, tarefa legada, de bom grado, aos mestres da universidade.
Enquadra-se, com permissiva indulgência de julgamento, virtude rara entre sábios, entre livros temáticos, de conteúdo explícito, tendo justamente o livro como motivação central.
Da oralidade à escrita, da leitura ao labor dos copistas, inscrevem-se por aqui, ensaios e exercícios pouco comedidos sobre os instrumentos de apropriação e registro da cultura, da ciência e da história — e da sua justa repartição por quem deles carece.
Sem perder o foco do livro como construção material e modelagem culta, há textos neste rol de recortes que convergem para uma análise pertinente de obras consagradas e de outras tantas, justa ou injustamente esquecidas.
Tratam estas conversas da persistência da oralidade na transferência do conhecimento e da recusa da criação de um repositório escrito, no qual o saber correria o risco, segundo alguns pensadores, de engessamento, em impressão criminosa, com prejuízo da memória e da oralidade. Neste contencioso nasceram, como sabemos, os scriptorium, como oficina da escrita e dos códices, das torahs e, finalmente, com Gutenberg e os tipos móveis, dos incunábulos.
Recuperam-se, nestas páginas, a produção livreira e a memória das livrarias e dos alfarrabistas do Ceará. Dos impressos tipográficos aos projetos avançados da arte gráfica, surgem mostras significativas de experimentos que falam muito bem da inventividade do tipógrafo-impressor nas velhas e usadas impressoras alemãs, muitas delas trazidas em deplorável estado de uso, de seus antigos usuários. Que fique claro, entretanto, não tratarem-se de registros fidedignos, buscados nos escaninhos públicos da memória cartorial. Correspondem a uma crônica independente, produzida a partir de preferências pessoais, intangíveis, porém verdadeiras, de um aplicado aprendiz alfarrabista.
Levado por impulso autocrático incontornável, o autor permitiu-se falar das suas marinhagens como editor, de seu aprendizado, jovem ainda, nas Editoras Espasa-Calpe, de Madri, e do que foi capaz intentar para criar, com régua compasso, uma editora no Ceará.
Temos autores, livros e gráficas, só nos faltam editores e projetos editoriais. A Martins Filho e Lúcio Alcântara caberia, entretanto, por justiça, o prêmio da exceção, editores, cada um a seu modo e segundo as suas referências culturais.
De uma taberneira de livros antigos colheu-se uma estória de amor entre fregueses cúmplices de sebos e de compras — e de encomendas de livros raros. Uma terna troca de e-mails revela como foi possível aviar uma história de amor entre leitores de Heidegger, graças à indulgente intermediação de uma alfarrabista.
15 escritores e bibliófilos reconhecidos compartilham, como convidados, em textos assinados, a revelação do longo caminho de leitores e colecionadores — e como lhes foi possível reunir e ordenar os seus acervos bibliográficos. E ler a parte visível do rico aprovisionamento acumulado.
São eles: Ângela Gutierrez, Alder Teixeira, Auto Filho, Barros Alves, Candido Albuquerque, Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes, Fernando Luiz Ximenes Rocha, Filomeno Moraes, Geraldo Jesuíno, João Soares Neto, José Augusto Bezerra, Juarez Leitão, Luciano Maia, Lúcio Alcântara e Luiz Sérgio Santos
Abrem-se, nestes dois volumes, atendidas as recatadas injunções, janelas e estantes sobre os segredos da bibliofilia, como ciência e mania tolerada. Fala-se nestas páginas das viúvas e das térmitas, de como perder livros ou roubá-los. E de como confiscá-los, em ação revolucionária relâmpago, dos balcões das livrarias do Quartier Latin…
A questão editorial foi objeto, nestas Conversas, de algumas avaliações pertinentes e necessárias. Pelo conteúdo técnico da abordagem, entretanto, não as incluímos aqui. Fica, não obstante, o registro das tentativas vãs e aparentemente inúteis para resolvê-la, como se há de ver.
Tipografias e editoras, livrarias, textos e contextos confrontam-se, prosaicamente, no Ceará, com o desafio da distribuição comercial do livro e de uma estrutura ágil para a produção editorial. Fora do arco do grande mecenato público, ambicioso porém desordenado, algumas iniciativas persistem, empreendimentos privados, velas soltas à contra-maré de um mercado cheio de surpresas. Por tanta persistência merecem ser citados, pela resistência heroica nesta ramo, o Armazém da Cultura e a Fundação Demócrito Rocha.
O livro cearense, publicado no Ceará, parece condenado à prisão do que é irrelevante, como se fora um mero objeto de curiosidade. Alimenta, quando muito, a vaidade dissimulada de quem publica por conta própria ou pela proteção cega ou voluntariamente seletiva do mecenato do Estado.
O livro comprado e o livro dado fazem a diferença nas escolhas e nos impulsos de guarda dos colecionadores… “Há livros que temos e livros que lemos”, diria Umberto Eco para justificar-se pelo enorme acervo reunido em sua cidade de papel de Milão.
Livros, compramos os que pretendemos ler. Ou os que pretendemos guardar. Eis que, afinal, nada assemelha-se tanto a um livro de papel quanto uma escultura. A escultura são formas lavradas, como queria Picasso, extraídas pelo cinzel do escultor, nada mais do que o excesso retirado do mármore bruto pelo cinzel do artista. O livro, dos códices ao incunábulos, são os volumes, as formas, a submissão do papel e do texto inscrito à modelagem da encadernação que lhe empresta corpo e imagem.
A diferença entre imprimir livros e editá-los desponta dos acertos de escolha bem sucedidos. Como selecionar textos para publicar, em confronto com a política de favorecimento de obras destituídas de valor que domina as gráficas e “editoras” oficiais? Como fugir das listas inquisitoriais fixadas pela ideologia ou pelas razões da dogmática?
À vontade de escrever, impulso de que deverei encher-me de remorsos tardios, não me permitiu renunciar à tentação de explorar a vida cultural no Ceará. Escrever, publicar e fazer “vida literária” — a celebração da intelligentsia — não são certamente a parte mais difícil de contar.
Deixei para o fim, et pour cause, as rivalidades intelectuais: o saldo dos esquecidos e os “deslembrados”, como vingança exercida contra o talento incômodo, inclinação natural, incontornável e cruel a que se permitem algumas criaturas cultas. O “deslembramento” é a categoria estético-afetiva, ideológica por franca inspiração, na qual se inclui o esquecimento intencional dos que se atrevem a veicular opiniões contrárias à nossa. Relaxemos, que destes não haveremos de nos ocupar nesta noitada que se prenuncia bem provida das artes da sedução.
No mais, que valham os textos dispersos: os ”gossips”, as intimidades confessadas, as “stories” bem humoradas, os perfis intelectuais.
E, por fim, com os agradecimentos por encontrar-me nesta assembleia cordial cercado por amigos, leais e solidários, poder evocar o brilho do estro do sonetista Otacílio Colares:
“Amigos valham os bons, poucos que sejam,
que nisto não importa a quantidade,
pois quase sempre é de fidelidade o tom daqueles que demais cortejam…”