“A glória d’Aquele que é a origem de todas as coisas manifesta-se no universo inteiro, em algumas partes resplandecendo mais, em outras menos.” (Dante Alighieri, em A divina comédia. Terceira parte: Paraíso; Canto I. Trad. Hernâni Donato. Círculo do Livro; pág. 237).
Diógenes nasceu acometido de mal raríssimo, possivelmente fruto de disfunção cromossômica até então não descrita na literatura médica, mas já com adiantados estudos em laboratórios de pesquisas avançadas na área da saúde humana. A anomalia já se manifestou (e pôs de sobreaviso os médicos obstetra e pediatra, além das enfermeiras, equipe que acompanhou o parto e o puerpério) na ausência da reação natural de recém-nascidos – o choro –, nele sendo de todo infrutífero o usual procedimento da “palmadinha na bunda”, embora se verificasse, nos primeiros contatos, tratar-se de criança aparentemente saudável. Passou a receber cuidados especiais, a submeter-se a recorrentes exames específicos, vivendo sob o olhar atento de profissionais da saúde, nas áreas da Pediatria, Neurologia, Psicologia e Psiquiatria. O entendimento era de que a criança sofria de distúrbios neurológicos que afetavam o sistema nervoso central, impedindo-o de processar impulsos por fatores intracorpóreos (basicamente biológicos) ou extracorpóreos (estímulos sensoriais ou capturados pelo sistema sensitivo), o que a condicionava a sofrer profundas perdas das sensações visuais, táteis, gustativas e olfativas, assim como dos sentimentos, com reflexos nas expressões de afeição, amizade, amor, carinho, admiração, alegria, felicidade, prazer, satisfação, entre outras demasiadamente humanas.
A mãe se culpava por tudo o que fazia o filho ser especial. Para tanto, considerava a decisão de engravidar, pela primeira vez, em idade não muito propícia ao processo gestacional – já quarentona –, observação ouvida do ginecologista tão logo se percebeu grávida, o tratamento farmacoterápico e fisioterápico específico e intensivo para manter sem transtornos de toda ordem a gravidez de risco, assim como a ideia fixa de que fora castigada por nunca admitir o envelhecimento, com a narrativa que a perseguia sobre haver pedido a um médico orientação quanto o que fazer para não envelhecer e recebido a sugestão de “comemorar” tal fato, ressaltando que todo indivíduo envelhece desde que um feliz espermatozoide fecunda um receptivo óvulo, instaurando um percurso retilíneo no tempo, mas extremamente curvilíneo e acidentado nas múltiplas vivências, embora propenso à proficuidade e tudo o que há de positivo disso decorrente, cuja interrupção só se dá com a morte. E o peso disso ganhou outra dimensão quando aventaram a possibilidade de ele não chegar aos quinze anos. É no mínimo comovente conviver com a perda anunciada.
Ela dedicou-se exclusivamente a oferecer ao filho as condições para um estilo de vida em que houvesse, na medida do possível, a compensação das privações causadas pela síndrome que o tornava extremamente impassível. Acompanhou o crescimento dele, seguindo rigorosamente as recomendações médicas, incluindo os cuidados diuturnos para evitar o emagrecimento doentio, a desidratação e seus efeitos deletérios, o enclausuramento destrutivo, a fuga excessiva ao cotidiano natural de cada faixa etária. Eram comuns os passeios por áreas abertas, arborizadas, para o saudável contato com a Natureza, para os benéficos banhos de sol e para a aproximação com pessoas das mais variadas idades; apesar de não reagir a nada disso, Diógenes também não demonstrava qualquer tipo de contestação, de contrariedade – sem questionamentos, sem queixumes, sem regozijos. E o menino venceu a barreira dos quinze, recebendo dos pais uma viagem à Europa, com todos os cuidados que o caso requeria, presente que poderia ter sido o dos sonhos, algo que ele não aparentava sequer sentir. Já adolescente, passou a exercitar-se em academias, a correr e andar de bicicleta na orla marítima, a frequentar eventos em ginásios poliesportivos em plena atividade – futsal, vôlei e basquete –, a participar de ações beneficentes, a assistir aos cultos evangélicos em templo próximo à sua casa e a passear em feirinhas do bairro e até em shoppings centers. E os pais, especialmente a mãe, sempre lhe serviram de companhia.
“Eu sou a flor do mamulengo (1) / Me apaixonei por um boneco / E ele neco (2) de se apaixonar (…) // Já estou com os nervos à flor do pano (3) / De desengano, vou ter um treco” (4). (Luiz Fidélis, em Flor do mamulengo).
Numa dessas idas a shopping recém-inaugurado, com alta frequência de público mais interessado em apreciar as novidades que propriamente adquirir produtos em promoção – corredores com alto fluxo; lojas quase sem nenhum –, os pais do jovem, que os acompanhava, também assumiram esse tipo de comportamento, apenas avaliando, aqui e acolá, o que lhes poderia ser útil para – quem sabe – futura aquisição, a depender do orçamento familiar ora administrado com bastante rigor. Após o percurso por quase todos os pavimentos superiores do equipamento, dirigiram-se à praça de alimentação, no terceiro e último piso, utilizando-se de concorridas escadas rolantes, em meio a gente alegre e expansiva. Diógenes nada demonstrou que merecesse registro, mantendo-se, como sempre, alheio a tudo e a todos. Era um rapaz bonito, bem-vestido e de boa aparência, não raramente atraindo a atenção de jovens da sua faixa etária que acabavam desistindo de avançar em provável tentativa de conquista ou até mesmo de simples aproximação, sem maiores propósitos, ante a total ausência de reciprocidade. Não se percebia nele a mais inexpressiva manifestação de sentimentos. Agia como fantoche, movido por intervenções dos pais.
No amplo espaço reservado à praça, grupos de pessoas se acomodavam em mesas dispostas ao sabor da freguesia, enquanto ágeis garçons e garçonetes, todos usando vestuário que identificavam as marcas para as quais trabalhavam, disputavam ou serviam os clientes, as conversas e os pedidos se misturando quase babelicamente. No entorno, os pontos de comércio e prestação de serviços: à esquerda e à frente, em formato de L, a sequência de casas de pasto – restaurantes, lancherias, bistrôs, pizzarias, sorveterias – oferecendo os mais variados cardápios; ao fundo, uma espaçosa e aparelhada academia, já com bom movimento; à direita, com corredor de acesso, um conjunto de quatro ou cinco lojas de produtos de uso pessoal – perfumaria, bijuteria, sapataria –, com destaque para a do centro, especializada em moda feminina – infantil, infanto-juvenil, juvenil e adulta –, com entrada ladeada por duas amplas vitrinas estilizadas que expunham belos manequins de resina e plástico, modelados com requintes de arte, vestidos em roupas que revelavam as últimas tendências da moda nacional, em meio a arranjos florais com atraentes toques artísticos, compondo um todo poético, do mais expressivo romantismo.
Diógenes, pela primeira vez, deixou transparecer um perceptível encantamento, êxtase nunca exteriorizado. Ante a perplexidade dos pais pelo ineditismo do fato, parou diante da vitrina para mulheres adultas, fixou o olhar no manequim à esquerda, belamente entrajado em vestido longo, o corte realçando a sensualidade da postura – ou o contrário –, em tom vermelho cor de sangue, rosto bem delineado e encimado por peruca de negros e curtos cabelos, tudo isso sob um feixe de luz branda e policromática, conformando um visual arrebatador. Parecia um ser vivo, embora inerte na sua condição de inanimado. E o rapaz, feito uma estátua, demorou-se diante do que via – e se encantava –, não propriamente atraído pela qualidade do vestido, mas – e isto era evidente – pela formosura deslumbrante, ao seu ver, do manequim. Os pais deixaram que as coisas acontecessem sem suas interferências; logo ocuparam a mesa mais próxima, com o pai colocando uma das cadeiras à disposição do filho, com cuidado para não interromper o enlevo, o envolvimento dele com a visão que certamente lhe causava prazer, algo improvável até então.
Diógenes experienciou o seu dissabor inaugural, tão logo se iniciaram os preparativos para fechamento da loja, no encerramento do horário de funcionamento, a noite já se aproximando, a passos de rápidos segundos, da irmã-gêmea madrugada. As luzes da vitrina se apagaram e uma cortina bege lentamente a guarneceu da eventual visualização das poucas pessoas que ali ainda permaneciam, mas já se preparando para deixar o shopping. O olhar de contrariedade que o rapaz então dirigiu aos pais trouxe-lhes dupla reação: a de oferecer ao filho a proteção de sempre, com vistas, no caso, a fazê-lo entender a razão do fato, através de palavras e gestos de conforto, além de promessas quanto a estarem ali com ele todas as noites, enfatizando que todos precisavam do saudável descanso do sono; a alegria – ou felicidade – de presenciar naturais reações de quem jamais as tivera expressado, em situação alguma.
Tornaram-se rotineiras as idas dos três ao shopping ou mais precisamente à praça de alimentação, com o pessoal do atendimento já lhes reservando a mesma mesa e também se admirando da paixão que o rapaz, em completo silêncio e envolvimento, demonstrava nutrir pelo belamente vestido manequim feminino. Era, sem dúvida, uma inexplicável demonstração pública de amor, embora não houvesse a desejada aproximação física que efetivamente o comprovasse; mas isso, no caso, se revelava de todo impossível, o que dava ao quadro contornos de incompreensível irrealismo para uns e de exacerbado romantismo para outros.
O certo é que o jovem a cada dia mudava o seu peculiar “modus vivendi”. Ia, aos poucos, assumindo comportamentos que enchiam de esperanças os que dele cuidavam, que zelavam pelo seu bem-estar, principalmente a dedicada mãe. Para a psiquiatra que cuidava do caso, que o via com olhos da ciência, tratava-se de interessante evolução. Para o narrador, romântico incorrigível, eram coisas do Amor; simplesmente isso.
“Se no teatro eu não te atar / Boneco, eu juro, vou me esfarrapar / Não tem sentido viver sem teu dengo / Meu mamulengo.” (Idem, ibidem).
Como quase tudo na vida tem começo, meio e fim, fatalmente mais cedo ou mais tarde iria acontecer a interrupção do idílio, do devaneio, da fantasia ou, como queiram afáveis leitoras e leitores, do amor impossível entre um jovem especial e um insensível manequim.
Aquela noite já se pronunciava propícia a desprazimentos, a descontentamentos: o céu desprovido de estrelas, a renitente neblina fora de época, o vento noturno soprado com inconsequente quentura, além da enxaqueca que não largava a mãe de Diógenes, impondo-lhe naturais desconfortos ou incômodos, eram pinceladas de um quadro que antecipava algum tipo de desdita, de vicissitude.
Logo que chegaram ao ponto dos encontros noturnos do rapaz com a sua inalcançável amada, estabeleceu-se o conflito, a perturbação: a vitrina já não mais expunha o manequim dos desejos do jovem apaixonado. Quem já se encontrava na praça – os que atendiam e os que eram atendidos – acompanhou à distância o desenrolar dos fatos. Diógenes manifestava inquietação, dando a entender que não compreendia o que estava acontecendo. A mãe lhe deu o devido acolhimento. O pai procurou informações com a gerente da loja que, solícita, explicou: não lhe cabia justificar nem assumir as razões da mudança, pois a loja apenas cedia o espaço às empresas produtoras de modas e suas fornecedoras de produtos para revenda, as quais, seguindo protocolos de “merchandising”, promoviam, em intervalos de tempo, as recomendadas substituições. E, após reconhecer a gravidade do problema que iriam enfrentar ante as reações do filho, desculpava-se por nada poder fazer.
Já em casa, Diógenes manteve-se silente, sombrio, circunspecto. Ouviu, abatido, arriado numa das poltronas da sala, palavras de conforto e estímulo com que seus pais pretendiam elevar a sua autoestima e evitar mais sofrimento. Após alguns momentos de introspecção, levantou-se e caminhou calmamente até o quarto. Desnudou-se. Descalçou-se. Vestiu tranquilamente o pijama. Deitou-se, agasalhando-se sob o cobertor. Custou a dormir, os olhos fixos no teto, parecendo estar dando uma arrumada nos pensamentos e procurando solução para o problema que ora o afligia. (Isso na exclusiva percepção do narrador onipresente, que nada disso podia provar, pois, para tanto, carecia de onisciência, coitado!).
A mãe logo se recolheu, após a ingestão de medicamento que arrefecesse os incômodos da deprimente enxaqueca. Ao pai coube a vigília do filho. Ao perceber que ele já dormia, também recolheu-se ao quarto do casal, as portas mantidas estrategicamente abertas para qualquer eventualidade.
De manhã, antes do desjejum e da saída para o trabalho, o pai, enquanto a mãe cuidava de arrumar a mesa do café matinal, agiu como autômato na condução dos procedimentos de rotina, indo ao quarto do filho. Algo lhe chamou a atenção. A cena do filho deitado de bruços e o cobertor e os travesseiros jogados ao chão causou-lhe arrepios, arrevesou-lhe a alma, temendo o pior. Logo o abateu a forte dor da perda de quem tanto amava.
Diógenes não resistira ao revés amoroso – o coração explodira; sofrera uma síncope, seguida de letal parada cardiorrespiratória. Ali, agora jazia apenas o corpo inerte, a fria matéria; o espírito já não mais estava com ele. Mais uma vez, a Morte vencera a Vida. Nada mais podia ser feito.
Notas do autor:
(1) Fantoche, marionete, títere, bonifrate (boneco ou objeto personificado e movido por meio de cordéis manipulados por pessoa oculta atrás de uma tela, em um palco em miniatura).
(2) Nada.
(3) Recurso usado pelo compositor para reforçar a ideia de personificação do boneco, a partir da expressão “à flor da pele”. (A pele do boneco é de pano).
(4) Troço; mal súbito (inesperada e repentina perda de consciência).