Conto de reminiscências juvenis: Flor da amapola

“O vício, a morte, a pobreza, as doenças são assuntos graves sobre os quais não podemos meditar muito tempo sem cansar.” (Michel de Montaigne, em A propósito de Virgílio/Ensaios; pág. 793).

A mãe, uma quarentona desleixada, de corpo bem nutrido, de salientes protuberâncias frontal e posterior, estatura mediana, rosto levemente arredondado, cabelos crespos, volumosos e arruivados, olhos esverdeados, pele esbranquiçada – em alguns momentos, de mais exposição ao sol ou de estresse, adquiria coloração avermelhada, como se o sangue fosse esguichar pelos poros –, semblante carregado, de quem aparentava estar sempre disposta a comprar uma boa briga, com indeléveis marcas de frustrações e sofrimentos que a miséria cotidiana insensivelmente lhe impunha, viciada recalcitrante em álcool e fumo, prisioneira circunstancial da prostituição, recebia, com frequência e para parcos ganhos, os seus homens libertinos, infelizes e insatisfeitos em domicílio próprio, casebre de taipa e piso de chão batido, sob a precária iluminação de lamparina de flandres, pavio de algodão retorcido e gás querosene, em vila de casas simples e fronteiriças ao antro de perdição, compondo a sombria zona do baixo meretrício. Retirava do árduo e descontínuo – em face de seus incorrigíveis atos de irresponsabilidade – trabalho de lavar às margens do rio e passar roupas a ferro de engomar aquecido a brasas, o meio saudável da sobrevivência e doentio da manutenção dos vícios. Não dispunha, portanto, das condições básicas – financeiras e morais – para dar vida digna aos três filhos, gerados em prazeres espúrios, em diversas e fugidias parcerias amorosas com indivíduos que não se compraziam com a desgraça alheia, que não se deixavam afetar pelas consequências desairosas de atos praticados única e exclusivamente em favor dos seus caprichos másculos, da satisfação dos seus prazeres carnais, que não sentiam sequer qualquer tipo de remorso ante a desgraça que provocara em outrem, de peso na consciência ante os encargos da paternidade extraconjugal, risco assumido ao adentrar o prostíbulo por portas de través. E essa situação de extrema injustiça – segundo ela – concorria sobremaneira para as suas recorrentes recaídas no deplorável vício do álcool, com tristes, vexatórias e vergonhosas crises de embriaguez, bem como para o pecaminoso, arriscado e decadente processo de prostituição. E a sociedade hipócrita, em vez de lhe dar a mão, na tentativa de recuperá-la, tratava-a com desdém e até escárnio, com o descaso encontradiço na marginalização, com a intolerância soberba do Bem contra o Mal.
A filha mais velha que, fisicamente muito com ela parecia, acolheu-a, ainda nas fraldas, um abnegado e generoso casal de idosos – ele, servidor público federal aposentado; ela, prendas do lar e cozinheira de reconhecido desempenho culinário (o chouriço de sua lavra recebia elogios até do mais exigente dos comensais) –, num tipo de adoção muito comum nos tempos pretéritos, em que padrinhos assumiam a grave responsabilidade de criar afilhados, sem qualquer intervenção de autoridades públicas constituídas, sem lavratura de específico documento em cartório que a legitimasse civilmente, mas sob as bênçãos de São José Operário, o ícone das adoções, que a ungiam de eficácia cristã. Os idosos sempre pretenderam criá-la como se filha fosse, com todos os benefícios que tal procedimento poderia render-lhe; ela é que, tão logo se percebeu diferente de todos os outros filhos e netos do casal, renunciou tacitamente aos tais favores e comportava-se como serviçal, juntando-se voluntariamente às pessoas que cuidavam da ampla casa, erguida em terreno espremido entre a estradinha de acesso a localidades periféricas do município e o sopé de uma colina, o que lhe dava um quintal lateral repleto de árvores frutíferas – ateiras, pitombeiras, goiabeiras, cajueiros, sirigueleiras, jenipapeiro, etc. –, um amplo jardim de plantas várias e flores de diversos tons e odores, todas regadas com água de alto teor de potabilidade, recolhida a balde preso por corda a roldana instalada em armação de madeira, de um generoso cacimbão escavado na parte mais interna da pequena e bem cuidada propriedade. Sempre tinha muitos serviços a executar. E ela incansavelmente demonstrava prazer em realizá-los. Cresceu assim. Adolesceu assim. Chegou à maioridade sem perceber sequer o retilíneo e irretroativo passar do tempo.
De todos, conquistou o respeito e a devida consideração, até porque nunca quis ser o que na verdade não era. Sabia das suas raízes familiares; não as negava; ao contrário, delas extraía o que de positivo lhe servia para a construção de uma personalidade simples, forte e exemplar. Não se deixava empolgar pelos prazeres mundanos que a vida punha à disposição dos jovens da sua época, não se permitia vergar-se aos apelos dos eventos sociais que, então, passavam ao largo da sua realidade existencial. Somente saía ao mundo nas manhãs de domingo quando se vestia com a melhor roupa, bem lavada e bem passada, calçava os chinelos de pouco uso, juntava-se às pessoas do seu grupo familiar, subia a colina e ia assistir à missa na capela do bairro, onde até havia lugar reservado para eles, tão significativa era a participação deles no cotidiano do bairro. Cumprida essa obrigação dominical, em nome da fé e dos bons costumes, pouco se demorava em conversas no patamar da igrejinha, logo retornando ao aconchego do seu ninho particular.
Nas primeiras noites do mês de junho, a capela se iluminava toda, engalanava-se com floridos arranjos, revestia-se de alegria pelos festejos tradicionais ao santo casamenteiro – o belo Antônio – no trezenário que, reunindo os fiéis do lugar e de localidades circunvizinhas, era-lhe oferecido por seus devotos.
Monalisa – chamemo-la assim, por seu esverdeado olhar enigmático e pelo seu sorriso severamente contido, que mal se manifestava nas comissuras da boca, de lábios sem qualquer arranjo artificial – permitia-se participar de todos os regulares ofícios religiosos, mas sem sentir o menor estímulo a permanecer nas sempre festivas quermesses, ao som da irradiadora, a “rádio sertaneja” de então. Na última noite, todavia, ante as opções mais apelativas que concorriam para uma maior aglomeração de pessoas, ela deixou-se sentar-se em um dos bancos da pracinha, em nível abaixo do patamar em apenas quatro degraus, sob a proteção de grande crucifixo em pedestal de alvenaria, e acompanhou sem muito interesse a febricitante movimentação de gente alegre e desejosa de aprazimento. Chegou até a pensar: “Esse povo parece procurar o que não perdeu… sem saber sequer o quê!”. Liberou um de seus imperceptíveis sorrisos irreprimíveis ao ouvir, pela voz bem característica do locutor da irradiadora, que alguém, protegendo-se no anonimato, mandava-a para o caritó. Ora, a solteirice fazia parte dos seus projetos para o futuro; o casamento não a atraía; nunca a atraiu. Não nutria a menor intenção de partilhar a sua intimidade com quem quer que fosse. O exemplo de vida da mãe certamente contribuía para essa opção celibatária. No particular, nascera para a solidão, com que se dava muito bem. Ao caritó, pois!
De repente, uma visão inesperada, avassaladora, mexeu com seus sentimentos mais profundos, os quais, dormitando desde sempre no mais recôndito da alma, jamais desejou despertá-los. É que, bem à sua frente, passou, de braços dados com duas elegantes, simpáticas e sorridentes jovens, um rapaz de boa aparência, que lhe pareceu cativante, um príncipe no pleno usufruto da sua jovialidade, do seu poder de encantamento e conquista. Acompanhou-o com um olhar de expressivo interesse; percebeu que um sentimento estranho ao seu modo de viver invadia-lhe o até então inviolável espírito feminil. Não tinha sequer noção do significado do que ora abrasava o seu virginal coração que então pulsava fora do ritmo natural; mas uma voz, saída das suas entranhas, soprou-lhe aos seus ouvidos um misto de sons que evocavam, ao mesmo tempo, estímulo e advertência: “Mona, a isso nós chamamos de ‘amor à primeira vista’. Saudável é por ele lutar sem esmorecimentos. Perigosos são os seus efeitos. Pode causar prazer, mas também pode provocar muita dor.” Tentou compenetrar-se nas limitações da sua realidade, retomar os seus simplórios pensamentos, reprimir sentimentos que não se julgava capaz de nutri-los. Debalde. Seria ela, por acaso, a Gata Borralheira ora convidada a lutar pela conquista do seu Príncipe Encantado? Ou seria a machadiana Helena do amor inconfessável porque impossível por Estácio? A visão do jovem preencheu o vazio da sua alma. O sentir era bem mais forte que o ser. Percebeu-se apaixonada. Não havia como fugir daquela realidade. Também não sabia como nela teria de conduzir-se. Tudo lhe parecia distante, inalcançável; apenas um sonho… com risco de tornar-se pesadelo.
O rapaz – chamemo-lo de Leonardo; não porque dispusesse de atributos que minimamente o aproximassem do celebrado gênio italiano (1), mas porque se impõe que seja, no caso, dado nome ao personagem-antagonista, e esse é, para o autor destas mal traçadas linhas, o mais apropriado circunstancialmente – era adepto do donjuanismo (2), proposta comportamental que desempenhava com exímia competência, sempre sob o incondicional estímulo da mãe, que tinha o filho como deidade da beleza masculina a ser idolatrada pelas mulheres e invejada pelos homens. Para ele – conforme declarava nos poucos encontros com amigos –, não cabiam, no relacionamento com as suas conquistas, atitudes restritivas como namoro e casamento. Tratava todas com atenção e carinho. Dava-lhes o prazer da convivência espontânea e livre, sem quaisquer tipos de amarra, de exclusividade. Era feliz assim e não se dispunha a mudar. Ocorre que, no rol das jovens por ele declaradamente apaixonadas, havia algumas mais discretas e exigentes que não aceitavam esse tipo de jogo; era brincar demais com seus sentimentos puros e futurosos. E Monalisa, já no primeiro olhar, que a fez abandonar de vez o voto de solidão perpétua, tornava-se firme candidata a compor este bloco – nada de compartilhamentos do amor que aprendera a sentir por um homem, em meio aos festejos a um santo casamenteiro; e, se aquilo consistia em provação, o milagre tinha de ser integral.
Leonardo não acolheu Monalisa, não reconheceu o sentimento que ela nutria por ele. Havia, no exclusivo sentir dele, uma razão inarredável: ela não atendia os requisitos para ingressar no seleto grupo de suas diletas admiradoras. Não houve desprezo, até porque não houve acolhimento. Não se tratava de caso único; havia outras candidatas também não admitidas no seu peculiar universo de deslumbramentos, de seduções, submetidas ao desumanizante convívio com o amor não correspondido, propício a reações de múltiplos matizes, variando de umas revestidas da ferocidade da frustração, de consequências sempre desastrosas, a outras imersas no silêncio do bom senso, embora sob dor lancinante a rasgar o mais severo dos espíritos. Tratou do fato como se fosse um mal-entendido. Esse posicionamento mereceu a aprovação maternal, para quem a moça devia reconhecer quão inconsequente era o seu desejo. Não havia a menor chance de se albergar no harém do filho. Que fosse abrigar-se em outra freguesia. Obviamente, as origens da moça eram levadas em consideração. Isso se tornava plenamente observável.
Já na noite do domingo seguinte, surpreendeu a todos a presença incomum da moça de vestido simples, olhar enigmático e sorrisos imperceptíveis, passeando com parceira recente e entre os vários grupos de jovens, pelo calçadão cimentado do arborizado e artificialmente iluminado módulo quadrilátero da pracinha do bairro, dos três o de nivelamento que mais propiciava essa jovial movimentação, quando ocorriam conversas sobre assuntos os mais diversos, além de intercâmbio de novidades e vivências e saberes, de flertes, de namoros, de assunção de compromissos e até juras de amor eterno. Naquele instrumento público, em seu espaço central, a municipalidade agraciara o povo do bairro com a estratégica instalação de televisor que, àquela época, transmitia a programação da TV Ceará, canal 2, afiliada dos Diários Associados – sob a batuta de Assis Chateaubriand –, repetidora, pois, do sinal da Rede Tupi de Televisão, seus noticiosos, novelas e programas de auditório, sempre atraindo grande audiência, nas noites de domingo, com o Programa Flávio Cavalcante, ferrenho crítico dos fatos que então trazia à baila. (E a pracinha era o ponto de encontro da juventude da minha geração. Eu no meio!).
Monalisa pouco conversava, porquanto a sua atenção deixava-se conduzir mais pela esperança de, na evolução de toda aquela efervescência juvenil, emergir a figura ímpar do rapaz de boa aparência que lhe despertara sentimentos puros de amor feminil, que preenchera de eflúvios odorantes os seus românticos sonhos das noites recentes. Mesmo que dele não merecesse a mais mínima das atenções, queria vê-lo; isso já lhe seria bastante suficiente para apaziguar a ora irrequieta alma de fêmea apaixonada. Só que Leonardo não apareceu; certamente desempenhava o papel de conquistador no palco de outros teatros citadinos. A moça logo se recolheu, com a frustração que lhe marcava profundamente o semblante, deixando uma boa impressão pela simplicidade, pela pureza de atitudes, além de um registro bem especial na memória fotográfica de quantos a viram: a flor vermelha de amapola, colhida no jardim dos pais adotivos, por ela tão bem cuidado, presa no cabelo crespo e volumoso, na parte que lhe guarnecia o lado esquerdo do rosto, que lhe encobria a orelha esquerda, dando-lhe um ar de distinção, jovialidade, graça e beleza.
Convém ressaltar, sem mais delongas, que Leonardo e Monalisa jamais se encontraram, jamais ocorreu entre eles sequer uma aproximação. A moça acolheu, então, o aconselhamento dos mais velhos para não investir tanto na tentativa de um relacionamento que não lhe daria o retorno esperado. Recolher para si um sentimento iria doer menos que a desesperança da desejada correspondência, além do humilhante desprezo.
O tempo fluiu na sua inflexível naturalidade. Leonardo, a convite de familiares, mudou-se de malas e bagagens para São Paulo, deixando para trás um mar de lágrimas das suas admiradoras, agora abandonadas ao – doloroso e dolorido – sabor da tempestuosa ventania do inesperado abandono. Os pais adotivos de Monalisa faleceram, a mãe biológica também, impondo-lhe a dor da orfandade, embora já mulher feita. A irmã mais nova já convivia maritalmente com comerciante local. Passados alguns dias, decidiu acolher o chamamento do irmão que, há alguns anos, fixara residência em Pouso Alegre, ao sul de Minas Gerais. E novos horizontes se abririam para ela que, certamente, saberia dessa outra realidade usufruir do que melhor dela pudesse extrair.
(…)
Recentemente, em conversa com parente da moça, soube que se graduara em Biotecnologia, conseguira um excelente emprego, casara-se com colega de profissão, tivera filhos. Já era avó. Já se aposentara. Vivia razoavelmente bem na capital paulista. Quanto a Leonardo, encerrara-o no fundo do baú das boas e saudáveis recordações. Nada mais que isso. Nos detalhes, revelou que Monalisa mantinha, na varanda do seu apartamento, um viveiro de belas amapolas vermelhas.

Notas do autor:
(1) Leonardo da Vinci, a genialidade renascentista, o artista de múltiplas expressões, nascido na Toscana italiana; de suas obras, destaco estas três: o afresco A Última Ceia, a gravura O Homem Vitruviano e a obra-prima Mona Lisa (La Gioconda, em italiano). Recomendo a leitura de O código Da Vinci, de Dan Brown.
(2) A Síndrome de Don Juan (tipo espanhol de galanteador) é um transtorno caracterizado pela compulsiva necessidade de seduzir, envolver-se facilmente em relacionamentos amorosos pouco duradouros; as pessoas com donjuanismo se interessam apenas com o processo de conquista, o cortejo sentimental.

Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

Graduado em Letras, ex-professor, servidor público federal aposentado.