— Mi, miau, miau, mi… au, miau, sss!
Nabuco protestava no meu colo, porém eu, ainda não afeito ao linguajar felino, de nada entendia. Apenas sentia, pelo tom amargo do miado, que ele discordava de alguma coisa.
— Calma, bichano! O que tanto o angustia? Logo descansaremos.
De repente, a explicação de Acácio:
— Clauder Arcanjo, Nabuco protesta quanto ao horário de nossa entrada em Licânia. Segundo ele, não se chega bem à meia-noite!
“Ainda mais essa! Um gato com arroubos de inglês e…”, pensei. Mas não concluí, pois Nabuco eriçou-se no meu colo, como se lesse os meus pensamentos.
— Miau, sss!
— Não está mais aqui quem assim pensou —pacifiquei-o.
As ruas estavam desertas, um silêncio em cada beco e esquina. Quando passávamos em frente à Matriz, a pedirmos a bênção à Senhora Sant’Anna, um grito:
— São eles, negrada!
Corajoso como sou, arrepiei-me todo e, por puro reflexo, apertei fortemente Nabuco com as mãos trêmulas.
— Miau…
— Desculpe-me, Nabuco. Tive receio de você não estar desperto. Digo, alerta — argumentei.
Com pouco, a Banda de Música, a notável Furiosa, num compasso sonífero, saudou nossa chegada. A pandemia tornava aquela apresentação sui generis. Os músicos, todos de máscara, “sopravam” seus instrumentos;aliado ao sono, a partitura ganhava um ar soturno. Mais de pesar do que de alegria.
Sem falar que mantiveram uma distância de dois metros entre eles, alguns idosos e com problema de audição (e zonzos de cansaço) atropelavam o ritmo seguidas vezes. Uma salva de palmas dos legionários da Scotland Yard de Licânia deu fim ao número musical, e a Furiosa, enfim, pôde se recolher.
Neste momento, o prefeito entregou a Chave da Cidade ao Companheiro Acácio:
— Licânia confia no seu herói! — arrematou. Mal passou a chave para Acácio, o alcaide cuidou de viajar. Não sem comunicar aos presentes:
— Vou retornar para o meu distanciamento social. Os líderes têm que dar o exemplo.
Distanciamento exagerado, segundo o Licânia Post, tabloide de oposição. Segundo o repórter Wagner Bonzer, ele se transferira, com toda a família, para um sítio no alto da Serra da Meruoca, a léguas do surto de Covid-19 nomunicípio.
Na Praça do Poeta, a figura longilínea do João Américo, o protofilósofo de Licânia, saudou-nos quando da nossa passagem.
Cuidamos de nos apresentar na Pensão do Raul. Em seguida, fomos orientados pelo Batista do Zé Aguiar a nos banharmos no rio Acaraú; não sem antes sorvermos uma dose cavalar de cachaça serrana, a fim de limparmos o corpo e a alma, evitando assim quaisquer riscos de contaminação em nossa chegada.
Solícito e professoral, Batista, verdadeiro amásio dapinga, acompanhava cada um dos recém-chegados, não no banho, mas na limpeza com a carraspana:
— Um brinde contra a Covid!
Quando chegou a vez de Nabuco, o felino cerrou os dentes, em protesto.
— Deixe de frescura, seu gato escroto! Nesta terra até os cachorros bebem — protestou Batista do Zé Aguiar, com receio de perder uma dose sequer da “maldita”.
Acácio resolveu a questão, confesso que com méritos:
— O Nabuco, caro senhor Batista, é filiado aos Alcóolicos Anônimos. Façamos o seguinte: você, como nobre cidadão licaniense, se importaria de tomar a dose dele, bem como a sua? Assim, salva-se o valioso brinde!
— Sempre estarei disponível para servir a uma nobre causa — concordou o pé de cana. A sorver mais duas talagadas, lambendo os beiços — E, como nunca é demais prevenir, mais uma pela Margarida, e outra reforçada pelo jipão do Lourenço. Assim, senhor Acácio, as duas viaturas estão também descontaminadas.
— Vamos nos recolher. O dia amanhã promete! —anunciou Lourenço.
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Mal entramos na Pousada do Raul, instalou-se entre nós a semente da cizânia.
— Eu não durmo de rede, vou logo dizendo! —protestou o intelectual Carlos Meireles.
— Só tem uma cama aqui, e a cama é reservada ao líder! — bradou Acácio.
— E que líder é este que não se sacrifica em nome do seu grupo? — devolveu Lourenço.
— Miau, mi…
— Não se meta em nossa discussão, seu Nabuco. A conversa aqui é pra cachorro grande — exorbitou Companheiro.
— Eu tenho problemas sérios de coluna. O meu médico me proibiu chegar perto de uma rede —argumentei, ao canto.
E a confusão tomava assomos de guerra declarada. Ninguém recuava um passo de sua renhida posição.
Passava das três horas da madrugada quando seu Raul, prático e decidido, entrou no quarto grande.
Reparei que ele estava munido de um cacete de jucá (similar ao do cabo Jacinto Gamão). Seu Raul correu os olhos por entre seus hóspedes, a declarar:
— Ou vocês se calam agora, ou vão tudo para a baixa da égua, seu magote de cornos! Na minha pensão, não! Fui claro?
O silêncio e o sono entraram pela janela. E dormimos placidamente; todos irmanados, no chão. Sem roncos e sem fazer mais o menor ruído. Engenho, arte e ofício do mestre Raul.