A cidade é uma só: O cinema como o lugar da dialética*

O pior lugar para o cinema é o lugar do “politicamente correto”. É claro que como espaço de experimentação, a arte cinematográfica é total por permitir e abarcar toda forma de construção ideológica. No entanto, considerando as emergências as quais nos confrontamos numa nação como o Brasil, a ideia que reveste nosso fazer em realização precisa ser libertária, incisiva e contraditória. E é desse escopo que surgem obras primas como o antológico “A cidade é uma só” (2011).

Tendo a chamada Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), que em 1971 removeu diversas famílias que moravam no entorno de Brasília, o filme é uma reflexão sobre o processo de exclusão permanente que perdura até os dias de hoje na Capital Federal. Para isso, o realizador Adirley Queirós contextualiza a história de Dildu (Dilmar Durães), Nancy (Nancy Araújo) e Zé Antônio (Wellington Abreu) através do processo de inserção desses personagens no seio das transformações que ocorrem na cidade de Brasília.

Essa construção, entretanto, é o ponto de maior força do longa. Tomando-o como documentário, podemos entende-lo como um documento fílmico que nos ajuda a entender parte de um complexo processo de exclusão próprio da gênese do Brasil como projeto de nação. E entendo-o como ficção, podemos percebê-lo como o trabalho mais importante já realizado pela cinematografia brasileira desde o início desse século.

E o que pode soar como exagero, na verdade, se faz entender como uma esplêndida síntese de como e aonde nossa produção audiovisual deve apontar e seguir. Não, não. Falar de Cidade de Deus como obra máxima de nosso cinema nesses 16 anos desse novo século não é uma questão. A cidade é uma só, sim.

E no máximo, o longa de Fernando Meireles, O2 e Globo Filmes, mostraram apenas a produção do cinema com um pé na publicidade em um show de efeitos visuais e a batida estética da fome e violência no Brasil revisitada em novo século.

Por isso, em seu primeiro longa-metragem, Adirley nos mostra um novo fazer. Que mistura a estética e a política numa sintonia absurda com o pensamento criativo e de natureza colaborativa com todos que fazem parte do cinema como criação coletiva.

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Em seu primeiro longa-metragem, Adirley nos mostra um novo fazer misturando estética e política numa sintonia absurda com o pensamento criativo.

Na estória, Dildu é um trabalhador de serviços gerais que lança o nome como candidato distrital. Zé Antônio o ajuda na campanha enquanto busca comprar imóvel em Ceilândia e Nancy tenta reconstituir as memórias de infância durante o processo de expulsão das famílias da comunidade do IAPI nos limites da capital.

Todos esses personagens são construção. E dentro da lógica do documentário, a natureza vanguardista de uma trabalho como esse reside na liberdade criativa e de certa forma “avacalhadora” que Adirley e sua equipe entenderam ser necessário para que o sentido do filme fosse pleno. Discutir o uso “politicamente correto” do fazer cinema em nossa produção contemporânea se faz mais necessário do que nunca.

Porque esses personagens não estão em cena como um produto de uma arquetipia. Suas falas, atitudes e modos de se colocar no mundo são as mesmas registradas pelas câmeras. Eles quebram a linha gramatical do nosso cinema tradicional.

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Esses personagens não estão em cena como um produto de uma arquetipia. Suas falas, atitudes quebram a linha gramatical do cinema tradicional. Acima, Adirley entra em quadro junto aos personagens.

Daí a natureza como gênero documental. Mas elas também são ficcionalizadas. Dildu não é candidato, mas naquilo o que Adirley propôs que ele trouxesse para o filme, surgiu o personagem. E assim foi feito o jogo da arte que dar a ver nossa complexa realidade.

E na mais icônica sequência do longa, vemos nosso anti-herói percorrendo as ruas de Brasília em meio a imensa carreta do PT e da campanha de Dilma Rousseff à Presidência. Dildu vindo pela esquerda, Dilma e seus apoiadores pela direita. É a contradição de um País que vive um estado de febre há décadas, anos e séculos.

32 Observatório - Acareação - Adirley Queirós, A Cidade é uma Só

Dildu é a metafóra do brasileiro que luta contra a força de Estado gigantesco que a tudo esmaga.

Muito tem sido produzido pela nossa cinematografia. São filmes vários que reúnem uma potência e vigor que nos apontam que temos um caminho de resistência a trilhar nos anos que seguirão. Brasil S/A, de Marcelo Pedroso é um exemplo disso. Desse cinema que cria uma gramática por entender que os modelos postos já não dão conta das discussões que precisamos realizar.

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Entre os carros de uma imensa carreata dos partidos milionários, Dildu vaga já sem rumo. Um Dom Quixote do Distrito Federal.

Numa junção da experiência cinematográfica como expressão artística, um sopro de diversão mas sempre envolta numa proposta maior da estética e da política como modo de nos pensarmos enquanto produtos de uma nação que ainda é fruto, desde sua gênese, da contradição em diferentes tons e escalas.

Por isso filmes como A cidade é uma só serão lembrados e assim precisam ser daqui a 20, 60 150 anos. Para que nossa memória e estado reflexivo não sejam ferramenta nas mãos de um Estado reacionário e que não aceita a dialética como forma de progressão e novos rumos a ser tomados.

*A dialética é um método de diálogo cujo foco é a contraposição e contradição de ideias que levam a outras ideias e que tem sido um tema central na filosofia ocidental e oriental desde os tempos antigos.

FICHA TÉCNICA

Título Original: A cidade é uma só

Tempo de Duração: 70 minutos

Ano de Lançamento (Brasil): 2011

Gênero: Documentário, Ficção.

Direção: Adirley Queirós

Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.

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Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.