Chuva de verão: sopro de vida; prenúncio de dor.

Anoitecer. Da minha sacada, vejo um nevoeiro denso, como um paredão pintado de azul escuro quase negro e, sobre ele, nuvens aloiradas a deslizarem, fazerem e se desfazerem, como crianças vaporosas a patinarem numa superfície de gelo. Na sua base, a barra de chuva, iluminada a miúde pelos relâmpagos, é um olho colossal a pestanejar e a lacrimejar…Não demora, um raio risca-me os olhos e um trovão treme nas janelas de vidro. As árvores, em pânico, retorcem-se; o aguaceiro desaba…a tíbia energia, suscetível ao velho vento, foge. E tudo se transforma num breu molhado!

Recolho-me a um sofá e nele me encolho. O Lilo meu cachorrinho Shitzu daquela raça que aquecia os pés aos monges salta. E ficamos os dois, como as únicas criaturas vivas, dentro da noite…As águas estralejam no chão pavimentado e os pingos fustigam as palmeiras ornamentais…relâmpagos e trovões disputam a primazia dos sentidos…A sensação era de estar dentro de uma bolha negra, debaixo de uma cachoeira, iluminada apenas por fósforos efêmeros e faiscantes.

UFA! Passou. O lado bom das tempestades é a celeridade em que vêm por si, e por si, se vão…E, se se demoram, é porque existem os homens…homens pobres e ricos (paupérrimos de consciência) que constroem onde não devem…homens porcos que emporcalham as ruas; os espíritos mortos que não recolhem o lixo! E os prefeitos incuriosos dos córregos e galerias…

E as empresas que mineram? Ah! a Vale, que exemplar!… A Vale, na sua mais valia, bloqueia os vales e avalia a vida em vales de vintém, como um óbolo dos soterrados aos sobreviventes. E vai reproduzindo os seus rios de cascalho a tingirem as águas moças do Paraopeba, que cumpre a triste sina de reles rejeitoduto até o Velho Chico.

O fato é que a borrasca se foi, e dormi profundamente. Mas dormiria, se eu morasse abaixo dessas armadilhas de soterrar bichos e gente? Se vivesse à beira de rios e córregos ou nas encostas espalhadas pelo país? Dormiria, se fosse um dos milhões de brasileiros, expulsos da terra chã pela especulação imobiliária?...

Infortunadamente, os temporais já fazem parte de um calendário de aflições. Ficam também à sua conta a visita dos mosquitos e suas febres; as frieiras, as manchas de pele, as diarreias…É como se fossem argonautas malévolos a abrirem caixas de Pandora cheias de misérias!

Despertei, na madrugada, com o ribombar de um trovão, a despedir de Teresina (a Chapada do Corisco) e anunciar-se nos cocais do Maranhão. E o som claro, leve e familiar me fez lembrar nostálgico do sertão, meio abobalhado, tateando epifanias, não como a Macabea de Clarice Lispector…, mas como uma Macabea de mim mesmo…É o que se chamava, na minha velha infância, “trovão de coalhada”…Minha mãe e meu avô saudavam-no: “Louvores a Deus, que é nosso pai verdadeiro!” Aquele som rotundo anunciava-se quase como a voz do criador a anunciar um tempo de fartura e de bonança!…Explicar o que significa um trovão de coalhada para um vivente da selva urbana (para quem o leite nasce da lata) é tão inglório como incutir uma sentença de Hegel, na cabeça de um analfabeto. Mas eu, com meus seis anos, já faziao percurso: o trovão anuncia chuva, a chuva faz brotar a rama doce das chapadas; faz crescer o capim e a erva dos campos. Ao comerem verduras, as vacas crescem os úberes e dão muito leite… E do leite se produz a coalhada e muitas coisas saborosas!…E sabia mais! Os murrazinhos magros viravam touros de pescoços grossos e caras enfezadas, urravam nas veredas, corriam as patas na terra, simulavam briga com as moitas… os carneiros trocavam marradas nas malhadas… e os potrinhos corriam à toa com as narinas abertas ao vento.

Os homens começavam a aviar as enxadas, os arados, os arreios dos bois…os meninos entre tantos sonhos, sonhavam aprender a nadar. E já iam providenciar as cabacinhas à guisa de boia.

É isso é muito mais! (matéria para um livro) … Por enquanto dizer que a chuva no sertão é o combustível que move os adultos; escola e recreio para as crianças; a água nova que renova os campos e lava as tristezas.

Na sua ausência, vem a desolação: as vidas secas e ressequidas…As tristes partidas; o desencanto no semblante do vaqueiro, o coçar a cabeça do lavrador, o olhar perdido das mulheres…É um gemido dorido do peito do cantador…

Nas cidades, as pessoas sentem ausência de chuva, apenas como um refresco. Mas ficam enfezadas nos engarrafamentos, com as panes elétricas; enojadas, decepcionadas com a correnteza, formando um caldo escuro de fuligem, graxa e óleo diesel. A deslizarem nela para nosso escárnio copos descartáveis, sacolas plásticas (como irônicas aves aquáticas) …e os tufos de capim, os galhos, os colchões velhos, as sucatas eletrônicas a entupirem os bueiros e emporcalharem os rios…Tudo isso a denunciar a nossa falta denunciar a nossa falta de higiene, a nossa incivilidade e a incúria administrativa…

Talvez, por isso, uma tempestade urbana oprima tanto o peito. E um simples trovão de infância liberte-o.

“Louvores a Deus que é nosso pai verdadeiro” E que os homens ensinem a nadar os meninos, não só nas piscinas de cloro, mas também nas águas morenas com cheiro bom de barro dos nossos sertões. (Prof. Macedo)

Francisco das Chagas Oliveira Macedo

Francisco das Chagas Oliveira Macedo (Prof. Macedo) nasceu em Picos, sertão do Piauí, em 1960. Graduado em Letras pela UFPI, leciona língua portuguesa e literatura, nas redes pública e privada, em Teresina.

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