O restolho é o resultado de um trabalho mecânico que consiste em um amontoado de palhas secas com pouca vida. Fica ali, onde o verde cedeu lugar ao cinza, mas pode expressar grandes transformações, sobretudo quando inserimos no cenário a centelha – símbolo de um imenso perigo – porém capaz de nos conduzir a um processo diferente.
Em Maio de 2018, feito um Flânuer pelas ruas francesas, mas lembrando do Brasil, perguntei-me: quantas vezes aquele lugar foi transformado num restolho seco? Então me pus na tarefa de pensar no restolho brasileiro e o que falta, para que a centelha seja acesa. Portanto, o encontro da centelha com o restolho é aqui utilizada como metáfora para expressar uma rápida visão pessoal entre França e Brasil.
No século XIX, Napoleão III estava disposto a promover a chegada da França na modernidade, ainda que fosse necessário pagar um preço elevado. A tarefa desenvolvimentista coube a Haussmann, financiando estradas, abertura de ruas e as ligações de esgotos. Não obstante, esse processo foi acompanhado por uma imensa desatenção aos anseios sociais. Uma pesada infraestrutura que custou aos franceses uma profunda gentrificação. O Barão de Napoleão – como era conhecido Haussmann – teve sua imagem desgastada até sucumbir à um restolho político. Seu enfraquecimento abriu espaço para a centelha que um ano mais tarde, foi chamada de comuna de Paris.
Os comunas num curto espaço de tempo conseguiram impor o fim do trabalho noturno, eliminaram os descontos nos salários, e assumiram as fábricas falidas pelo modelo de autogestão. Marx chamou esse movimento de ditadura do proletariado. Os comunas certamente ampliaram as possibilidades para tempos depois acender outras centelhas, como na revolução Russa. E, um século depois exatamente no mês de maio foi capaz de reacender a centelha nas ruas francesas. Os protagonistas eram outros. Jovens na idade, mas gigantes na ousadia. Depois vieram os operários, as mulheres, os artistas e os intelectuais. Todos tinham diante de si outro restolho seco que atendia por Charles de Gaulle1.
Observo um elo entre os dois processos históricos: a sociedade não tinha direito a cidade que construíra. Efetivamente precisamos compreender o que havia em comum entre os comunas e os estudantes universitários. No meu entender há pelo menos dois pontos importantes: o primeiro consiste na presença de um restolho seco (Haussmann e De Gaulle) o segundo ponto é que cada movimento, no seu tempo guarda em si uma centelha, necessária para provocar mudanças abruptas.
O Maio de 1968 pode representar uma síntese disso ao guardar em si uma etapa decisiva para nossa modernidade política e social. O movimento de 68 teve a capacidade de influenciar o mundo ocidental alterando os marcos do contrato social abrindo-lhes outras camadas de interpretação, inclusive desatualizando-o. A sociedade francesa cansada de receber o que não pedia assistia a marcha de uma ampla política de invisibilização da juventude, da classe operária e das mulheres. Esse processo era financiado pelo Estado, a tal ponto de aprofundar sua incapacidade de compreender as vozes das ruas. A todo instante a paciência popular era testada; quando se clamava por menos progresso, o resultado era mais desenvolvimento; quando se denunciava a gentrificação, a resposta eram mais viadutos e nas lutas por melhores salários, a resposta era mais trabalho.
Até que os estudantes de Nanterre acenderem a centelha. Depois “la classe ouvrière entre dans la danse2” recusaram receber aumento de 10%, exigiram 35%. Os trabalhadores da montadora da Renault foram diretamente influenciados pelos estudantes, não somente pela proximidade geográfica. Segundo o professor Xavier Vigna3, a influência ocorreu graças ao maior nível cultural adquirido na parca democratização da educação secundária do país, criando identidade. A solidariedade entre eles provocou a luta, abriu espaço para as mulheres e todos passaram a lutar contra o paternalismo nas empresas, combater o patriarcado no Estado e nem o mandatismo das universidades ficou de fora.
A cultura e arte foram o combustível dessa centelha que assumiu um papel central nesse processo. Isso provocou uma ebulição sem precedentes, pois sem a apropriação desse espaço não seria possível falar de liberdade sexual, direito a arte, tempo para o teatro e outras expressões sufocadas pelo gaullismo no seu sentido estrito. A magia dos grandes acontecimentos se exprime naquilo que antes era um gesto de protesto, que agora passa a ser ato contínuo da vida comum. Nessa fase, o beijo entre duas pessoas do mesmo sexo, por exemplo, não chama mais atenção por representar mais expressão de amor do que protesto político. Aqui o protesto e o amor não deixam de existir e faz anuviar qualquer consequência puritana.
Nesse momento, o restolho seco está prestes a queimar. Se grandes mudanças começam sempre com pequenos passos, é possível aqui reivindicar a utopia perdida e as pessoas sentem a história na mão. Rosa Luxemburgo, Marx, Engels reacendem nos artista de rua, nas artesãs que fazem do trabalho um ato político, nos músicos sem espaço na ópera, mas com prestígio nos cabarés e no pintor a tecer à guache os cafés de Montmartre. Por isso, resistir à opressão com a sutileza da poesia faz emergir o contraste entre repressão e o espetáculo. É preciso organizar para resistir!
Entretanto, não há revolução local! Como diz Patrick Le Hyaric4 “os grandes momentos de balanço são na verdade uma grande condensação de um borbulhar universal”. Por isso, Maio de 68 também enfrentou o imperialismo e o racismo americano, sobretudo em países do Leste Europeu. Esse movimento denunciou a sangrenta revolução chinesa e estava atento as novas formas de colonização que atingiam o Brasil. Havia portanto, um componente de solidariedade entre os manifestantes, além de uma visão internacionalista que os unia a comunidade internacional.
Atualmente, a centelha 68 é reacesa quando o ciclista ocupa a via, o músico reinventa os corredores dos metrôs, o homem de terno constrói atalhos com seu skate. Numa tríade entre o pintor, o desenhista, a florista renasce o direito à cidade descrito por Henri Lefebvre. O direito de refrescar os pés num fonte pública, ou simplesmente deixar-se tomar pelo sol num belo jardim. Enfim, o direito de reinventar o espaço urbano.
Quais as lições o Brasil pode retirar daquele respiro de emancipação? A realidade brasileira (política, social e econômica) está novamente tornando-se um restolho. Esse ambiente cada vez mais árido é marcado por uma economia adoecida e aprofundada na desigualdade. Soma-se a uma realidade social moralmente reduzida ao discurso fácil, cuja raiz emana de uma dinâmica política engessada no patrimonialismo. Há centelhas? O movimento das jornadas de junho de 2013, e recentemente, a greve dos caminhoneiros apontam para isso. Contudo, a sorte dos “donos” do restolho se dá na ausência de solidariedade associada à incapacidade de observar sistematicamente e internacionalmente a liga capaz de acender a centelha.
O que falta para acender a centelha no Brasil e o poder mudar de mãos? Não há qualquer garantia que a centelha seja acesa nas universidades, podem vir dos jovens, mas pode vir também da classe operária, das mulheres, enfim (…) só não virá dos donos dos restolhos. Efetivamente, isso representa um processo delicado, pode até ser insuficiente, pois os donos do restolho toleram queimadas localizadas desde que sejam apagadas antes de outras serem iniciadas. Isso ocorre porque a centelha é evitada por uma sólida desarticulação, seguida por ausência de solidariedade que facilita a proteção do restolho.
Por fim, estou convencido de que o Maio de 68 ainda resiste nos corações, nas expressões, nos textos e nos debates. Certamente pode nos dizer algo no enfrentamento ao restolho seco brasileiro. Isso pode estar na solidariedade de pessoas simples, fazendo coisas simples provocando mudanças radicais. Essa é a tarefa do novo flâneur, que nega as amarras e projeta palavras de ordens misturadas as poesias. Aqui, as mulheres, ali os jovens, mais adiante os trabalhadores. Forja um clima diferente cujo resultado não pode ser outro: Greve Geral! Todos emanados num profundo sentimento de solidariedade.
1 Ver o que significou o gaullismo.
2 A classe trabalhadora entrou na dança.
3 Professeur d’histoire contemporaine à université de Bourgogne – L’humanité, Hors´Série, pp 30 et 31.
4 Dicteur de l’humanité