O movimento catalão é intrigante. Não tanto pelo fato de grande parte da população de uma região aspirar com veemência a se separar de um país europeu ao qual está unida há mais de 300 anos, mas pela inépcia com que o governo de Madri enfrenta a situação. Mais difícil ainda é entender a disposição do líder do PSOE, Pedro Sánchez, e do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, de aderirem sem ressalvas a um legalismo pouco persuasivo.
Desde 2012, cada uma das celebrações da Dia da Nacional de Catalunya, aniversário do 11 de setembro de 1714 no qual as forças castelhanas dos Bourbon tomaram Barcelona e suprimiram sua soberania, mobiliza centenas de milhares em um espetáculo de dimensões e organização impressionantes.
Na Europa do Pós-Guerra, apenas Roma, em 2002 contra as reformas trabalhistas deBerlusconi e em 2003 contra a invasão anglo-americana do Iraque, teve manifestações políticas maiores. Mas estas não se repetem todo ano nem representam uma região de apenas 7,5 milhões de habitantes com a capital de 1,6 milhão.
O entusiasmo sustentado dessa parcela importante da população não significa o apoio de uma maioria esmagadora dos catalães à independência total. As pesquisas de opinião dão à proposta um apoio ora um pouco acima, ora algo abaixo de 50%.
Mas o simples fato de a ideia criar tamanha mobilização, conquistar a maioria do Parlamento regional e empolgar políticos e partidos de forma nenhuma fanáticos ou extremistas – o maior, Convergência Democrática da Catalunha, é de resto um comezinho partido liberal – deveria bastar para inspirar tanto.
Some-se a isso que a grande maioria da população da Catalunha – mais de 80%, em pesquisas recentes – quer a soberania, entendida como o direito de decidir, mesmo se for para deixar como está. Uma boa parte está aberta a um meio-termo. Talvez a Catalunha como estado de uma Espanha federal e plurinacional, como sugere o partido Podemos.
Pode ser significativo que as manifestações de 2013, 2014 e 2015, quando a independência não estava na ordem do dia, tenham reunido até 1,8 milhão e a deste ano, a três semanas da data marcada para o referendo, tenha ficado em 800 mil.
A palavra de ordem desta feita foi Adéu Espanya e muitos daqueles dispostos a reafirmar seus direitos como nacionalidade podem não querer se comprometer irrevogavelmente com a solução mais radical.
Entretanto, em vez de reconhecer a importância política da questão e negociá-la, o governo de Madri e o Judiciário espanhol optaram por tratá-la como mera questão legal. Juízes e procuradores invocam a Constituição para anular leis votadas pelo Parlamento deBarcelona, abrir processo criminal contra o chefe do governo catalão, Carles Puigdemont, ordenam à polícia catalã confiscar cédulas e urnas e ameaçam prender mais de 700 prefeitos que ofereceram instalações municipais para o plebiscito marcado para 1º de outubro.
Funcionaria, talvez, se fosse frivolidade ou onda passageira, mas não é o caso. É inútil esperar que metade da população de uma região e a maioria de suas lideranças esqueçam suas aspirações apenas por estas serem ilegais para um Estado cuja legitimidade deixaram de reconhecer. Prisões não constrangerão as lideranças – pelo contrário, lhes darão uma aura heroica.
É possível recorrer à força, inclusive militar, para impedir o referendo, dissolver o Parlamento e o governo de Barcelona, e impor interventores, mas o resultado provável seria ampliar o apoio à independência e pôr todo o país no caminho do autoritarismo. Pode ser uma forma de adiar o desfecho, mas torná-lo ainda mais desagradável, inclusive para Madri.
Pode-se compreender que Mariano Rajoy e o rei Filipe VI sejam incapazes de enxergar alternativas. Estão amarrados demais ao ranço totalitário do franquismo e às consequências de uma transição democrática que, como a brasileira, deixou de apurar, julgar e punir os crimes da longa ditadura da qual são herdeiros.
Somado às denúncias de corrupção que os acossam, o patriotismo, como diria Samuel Johnson, é o último refúgio, mas, se esta já pode ser uma manobra arriscada quando o foco é um inimigo externo, mais perigosa é quando se volta contra uma região e uma gente que supostamente se quer manter unidas ao país.
A história pode ajudar a entender. Talvez surpreenda a muitos, inclusive àqueles com algum estudo, saber que “a Espanha” só veio a existir em 1716. Na época de ouro de Cristóvão Colombo, Hernán Cortés, Francisco Pizarro, Miguel de Cervantes, Lope de Vega e Calderón de la Barca havia “as Espanhas”, um grandioso conglomerado de Estados governados por um mesmo soberano sem unidade jurídica, caráter nacional ou nome oficial.
O monarca em Madri intitulava-se “rei de Castela, de Leão, de Aragão, das Duas Sicílias…” e seguia uma lista de mais de 30 reinos, principados, ducados e senhorios com um “etc.” ao final para cobrir qualquer esquecimento.
Não era apenas uma questão de terminologia. Cada reino tinha suas próprias leis, costumes e língua ou dialeto. Enquanto nos mais de dez reinos que constituíam a “coroa de Castela” o Legislativo fora esvaziado e o rei governava por decreto, no reino basco de Navarra e nos reinos ibéricos da “coroa de Aragão” – Aragão propriamente dito, Catalunha, Valência e Maiorca – os respectivos parlamentos ou “cortes” mantinham plenos poderes, inclusive sobre guerra e paz.
A coroa de Castela carregou sozinha os frutos e os ônus da conquista das Américas e dasFilipinas. A coroa de Aragão nem sempre acompanhou suas aventuras navais e militares e cuidou das próprias batalhas, negócios e domínios na Itália e no Mediterrâneo, assim como Portugal geriu suas colônias e marinha em separado quando lá reinaram os Filipes.
Isso mudou após Carlos II de Habsburgo morrer sem filhos, em 1700, e legar seus domínios decadentes à dinastia Bourbon. O testamento foi contestado pelos Habsburgo austríacos, resultando nos 13 anos da Guerra da Sucessão Espanhola.
Castela aderiu aos Bourbon, mas Aragão preferiu os Habsburgo, em parte por se ressentir de uma invasão francesa em 1697. Foi só após aquele fatídico dia de 1714 que os domínios remanescentes foram unidos no “Reino da Espanha” e a soberania da Catalunha, suprimida.
Não foi apenas um castigo à sua insubmissão, mas consequência lógica da mentalidade centralizadora e absolutista dos Bourbon, forjada na submissão dos senhores feudais da França e que logo se voltaria também contra a autonomia dos Países Bascos e de Navarra, que os tinham apoiado.
A Escócia perdera a soberania para o Reino Unido poucos anos antes, mas de forma não violenta. Uma aventura colonial fracassada falira seu Estado e sua própria elite abriu mão da soberania em troca do perdão da dívida com a Inglaterra. Alemanha e Itália se unificaram bem mais tarde, mas com amplo apoio popular em todas as suas regiões.
A unificação espanhola foi mal resolvida também porque, ao contrário dessas nações, o Estado resultante nunca enfrentou uma grande guerra que o unisse contra um inimigo externo. Pelo contrário, sua história foi marcada por conflitos internos, nos quais se enfrentaram espanhóis de diferentes regiões e ideologias com diferentes aliados internacionais, como na Guerra Civil Espanhola de 1936-1939.
A República Espanhola proclamada em 1931 concedera à Catalunha e ao País Basco uma autonomia que as condições da guerra transformaram em quase independência, incluindo o controle de alfândegas, portos, ferrovias e milícias, mas, com a vitória de Francisco Franco e seus 36 anos de ditadura, o centralismo impôs-se de forma ainda mais intransigente que na monarquia, inclusive com a proibição da publicação de livros em catalão e do uso da língua em público.
Na Catalunha, como no País Basco, a defesa da identidade cultural confundiu-se com a resistência democrática, liberal ou de esquerda. E mais ainda entre os catalães e bascos de raiz incomodados com a migração de espanhóis de outras regiões, alguns dos quais se arrogavam superiores por só falarem castelhano.
Apesar de a redemocratização conceder autonomia limitada a todas as regiões, a óbvia identificação do Partido Popular com a herança franquista e a pouca atenção dos socialistas para suas questões específicas fizeram os grandes partidos nacionais criarem poucas raízes na Catalunha e no País Basco fora dos migrantes e descendentes, fortaleceram os partidos locais e possibilitaram a suas lideranças acentuarem o particularismo para ampliar seu controle da região e evitar a diluição de sua influência nocontexto espanhol, apesar da oposição de grandes empresas catalãs com negócios em toda a Espanha.
O fato de não ter havido na Catalunha luta armada comparável à da ETA no País Basco aparentemente só facilitou à classe média se assumir separatista sem o receio de ser considerada “terrorista”.
O conflito ficou mais ou menos restrito a questões culturais e educacionais durante os anos de razoável prosperidade da redemocratização e da formação da União Europeia, mas tornou-se muito mais sério após a crise de 2008, cujos efeitos na Espanha foram particularmente devastadores.
A Catalunha e o País Basco são regiões mais prósperas que a média e à questão da nacionalidade somou-se a crença de que se sairiam melhor se independentes. Os escândalos no resgate de grandes bancos (não catalães), no Partido Popular e nos negócios da família real também não favoreceram a causa da unidade.
Se décadas de negação franquista não fizeram desaparecer o problema, não bastará voltar a proclamar sua inexistência por lei.
(Texto originalmente publicado em Carta Capital)