Esgotei todas as formas de ocupação. Leio, procuro um ou outro filme que possa me interessar. Organizei uma rotina aborrecida.
De quando em vez saio de carro para uma catarse ao volante. Descubro uma cidade vazia, estranha, com raros transeuntes, espectros mascarados, solitários, vagando preguiçosamente. Saio à rua, como se dizia outrora, para consulta médica de rotina, aprazada, felizmente, sem as urgências dos cometimentos da nossa idade. São os exames clínicos, repetidos, cíclicos, aborrecidos de tão repetidos, encomendados pela curiosidade e a espeita dos nossos vigilantes médicos. São práticas corriqueiras que nos fazem perceber continuarmos vivos. Dúvidas, hesitações e incertezas que parecem exigir sejam tranquilizadas mais pela ansiedade dos nossos esculápios do que pelas nossas descuidadas obsessões. Afinal, a velhice, quando alongada, termina por transformar-se em uma prática rotineira; passamos, então, a conhecer todas as suas manhas e astúcias e vamo-nos acostumando à sua proteção contra os ímpetos dos mais jovens, ao excesso de amor que nos dispensam e às suas angústias dissimuladas por nos verem assim tão desprotegidos em face das nossas próprias dúvidas.
Aboli a tevê dos meus hábitos inconsequentes, para resguardo do que me resta de paciência e caridade para aceitar a imbecilidade alheia que tomou conta das pessoas e nos agride com o seu ar vitorioso de cruzados redentoristas. Resignei das assinaturas de jornais. Muitos deles desapareceram por conta própria, feito civilizacional marcante da pós-modernidade.. Dos jornais persiste, entretanto, a falta que nos fazem em certas atividades domésticas prosaicas. O caseiro dedicado, fiel às exigências de amiga minha, reclamou da suspensão das assinaturas dos jornais que chegavam cedo, pela manhã: “E agora como vou me arranjar para limpar as vidraças?”
As redes sociais são a passarela de um desfile de esquizofrênicos possuídos por impulsos ideológicos incontroláveis. À exemplo da luta de classes com a qual os reconstrutores da humanidade pretendiam soprar do barro ideológico o “novo homem”, os habitantes dessa galáxia virtual descobrem, no pormenor aparentemente irrelevante de uma retórica improvisada, o argumento guerreiro de uma nova e apimentada contenda. O contraponto é uma necessidade a que os internautas não podem fugir.
As pessoas perderam a vontade de rir, não conseguem entender uma ironia… Tropeçam, alvoroçadas, tacape às mãos, à vista de um jogo traquinas de palavras ou diante de uma tirada bem humorada. Vivemos um processo de embrutecimento descontrolado. O esboço leve de um riso casual pode levar ao desforço pessoal, reação de defesa ante uma atitude insolente.
Os pecados nossos de cada dia, perdemo-los quase todos; os miúdos e os maiores. Já não temos idade para as fornicações de outrora. Refuguei o vinho e a cerveja, nestes dias de recolhimento beatífico. Dei uma de bolchevique sem causa, optei pela vodka. Com limão siciliano. Recomendo.
Nesse quadro de lembranças distantes, surge, vez por outra, um riso de mulher por entre imagens adormecidas. Cada uma delas vivendo as suas amarguras. Perduram as formas gentis, rostos, as partes e o todo de tudo o que despertou impulsos sensuais, consensuais, hoje distantes. Mas são outras pessoas, como nós não somos mais os mesmos. Sequer nos reconhecemos diante do espectro que criamos de nós mesmos, em pontos esconsos e distantes do passado.
Gente de fé, como você, ocupa o tempo com a revisão permanente da contabilidade dos assentamentos das perdas e ganhos da moeda da Salvação.
De minha parte, sinto-me cada vez mais distanciado das fontes da Revelação, vou acumulando pecados metodicamente; sou um outro pecador, sem o empenho de outrora, embora tropece, outras tantas vezes, nos mesmo pecados reconhecidos. Sou, entretanto, um homem prevenido: se a condenação ao fogo do inferno é inapelável que não seja por pouca coisa. O problema é que, na nossa idade, até um pecado de menor monta é difícil de aviar com sucesso. Miudezas não importam na nossa conta/corrente da nossa caixa da salvação.
Tudo para concluir que, se não nos proibirem de continuarmos vivos, como sugerem os economistas da escola de Chicago, como medida profilática para o equilíbrio do déficit fiscal, ainda teremos com o quê nos ocuparmos.
Grande abraço. Dê o ar da sua graça.