Carta a Orwell, por Luana Monteiro

Fortaleza, março de 2019.

 

Caro George Orwell,

 

Sei que escrevo para um viajante no tempo, que nesse momento deve estar detido em análises em alguma outra dimensão ou em algum universo paralelo. Li sua obra, 1984. Ainda me encontro sem fôlego, por isso recorro à escrita. Muitas coisas se passaram pela minha cabeça. De cara me perguntei se você estaria motivado por um sentimento de descrença às ideias socialistas que se fizeram presentes em seu tempo. Ou se estaria instigado pelo desejo de mostrar, ao apresentar uma ideia de socialismo projetando aspectos tão semelhantes a sociedade capitalista, o caráter de falibilidade não só do capitalismo, mas da realização do socialismo.

Em oposição às diversas teorizações acerca de um sistema socialista, vemos o desenrolar da história de 1984. Não é o movimento operário, não é a conscientização das massas, não é a suplantação do capitalismo e de suas categorias mercadológicas, é mais uma forma de totalitarismo. Não vemos na obra a gloriosa derrocada da sociedade industrial para a transição ao socialismo seguida pela emergência de ideais e práticas igualitárias exercidas pelo tecido social em busca do aperfeiçoamento humano. Ao contrário, vemos o amesquinhamento e a degradação do homem em seus níveis mais profundos. O nível de achatamento das personalidades dos membros do partido “Ingsoc” acontece pelo controle constante dos corpos com o trabalho de eliminação das individualidades.

A pobreza do homem pós-revolucionário se dá em todos os aspectos. Tudo lhe é subtraído, suas sutilezas, suas particularidades, suas memórias e seu passado, em prol do funcionamento do programa político implantado em Oceania. O lema do partido, “Guerra é paz; Liberdade é escravidão; Ignorância é força”, representa os pilares sob os quais está o regime do Grande Irmão. O constante estado de guerra vivenciado é em si a própria expressão do que é a paz no “Socialismo Inglês”. A liberdade que há é apenas uma: permanecer membro do partido aceitando e amando seu ideal. O desconhecimento de toda a política interna e externa realizada pelo partido é o que mantém o elo social. A ignorância da própria história é o núcleo de controle e de permanência do regime.

Vejo, Orwell, que o ser por você traçado é a representação do vazio. Sua essência se traduz apenas na reprodução cotidiana de uma ideologia. É um humano que já não existe. Um corpo sem substância.

Estaria você empenhado em demonstrar que o homem do socialismo realizado apresentaria mais pobreza do que o homem que jaz entregue e abraçado aos delírios do capitalismo? Ou será uma articulação para analisar nosso próprio sistema falho projetando-o em outro?

Muitas das principais críticas dirigidas à obra mostravam o desalento do público que via a ideia da teoria social mais igualitária representada em um viés totalitário. Aquilo que para alguns era a saída aparece sobre as mesmas práticas, a mesma ideologia, a mesma estrutura de domínio, diferindo apenas no grupo que representa os demais. Se em ambos os sistemas estamos amarrados e presos numa subjetividade que não é individual, mas imposta por ideais alheios, passaríamos a acreditar que a única organização política que poderia dar um pouco de margem de ação aos indivíduos é o capitalismo?

O socialismo aparece como uma desilusão a ponto de parecer o capitalismo uma escolha viável. É fato, caro Orwell que pouca diferença temos entre ambos. O que é o capitalismo senão o assassínio das individualidades, a universalização de relações vazias feitas pelas coisas através do trabalho humano? O que é a realização da modernidade e da pós-modernidade senão a cegueira do passado, a passividade da aceitação e o apagamento das diferentes sociabilizações?

Hoje podemos dizer que os indivíduos alcançaram seu vazio ao aceitar uma lógica destrutiva externa como a sua própria. Mesmo assim, poderíamos ainda nos perguntar: seria o seu completo vazio? Me senti assim quando terminei a leitura de sua obra, em um vazio. Assim como Winston Smith, alienado do seu percurso de vida, do seu passado, da história do seu país e da própria verdade. Mesmo acreditando que não era possível extrair-lhe mais nada você nos mostra que o individuo ainda possui algo que protege inconscientemente, luta diariamente para não entregar. É uma espécie de verdade interior, uma força motriz que gera esperança de ação, de fuga. Ela aparenta ser oriunda do desejo ou da capacidade de desejar. E no momento em que notei me distanciar da minha própria materialidade, entendi que a tal capacidade também poderia ser aniquilada. A partir de então foi a indiferença que passou a mover aqueles corpos estilhaçados. Como é cruel ver a verdade.

 

Atenciosamente,

 

Luana Monteiro.

Luana Monteiro

Cientista social, mestre em Sociologia (UECE) e pesquisadora.

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Luana Monteiro

Cientista social, mestre em Sociologia (UECE) e pesquisadora.