Caquistocracia plutocrática: crítica, misologia e o fim da sexta república *

Este texto parte do diagnóstico de que vivemos, no Brasil e em parte importante do mundo, sob um regime que poderíamos denominar de caquistocracia. Esta, enquanto governo dos piores, ancora-se em uma pequena casta de ricos e muito ricos, uma plutocracia que dela se utiliza porque dela faz parte, para implementar, gerir e satisfazer seus interesses. Defendo que, como suporte de sua homofobia, misoginia, racismo, ecofobia e demofobia, etc, jaz uma forma devastadora de misologia, motor, em parte, de seu autoritarismo.

Em 2016, o parlamento brasileiro, legitimado pelo supremo tribunal federal, apoiado pelas grandes corporações midiáticas, financiado pelo agronegócio, pelo necronegócio e pelo teonegócio (bancada BBB: boi, bala e bíblia), amparado por militares e milicianos provocou um silencioso porém eloquente estrondo: o fim da sexta república! Com este golpe jurídico-parlamentar, midiático-empresarial a história das repúblicas brasileiras permaneceu fiel à sua vocação golpista, antipopular e antinacionalista.

Uma história que se inicia com um golpe, em 1889 e, não à toa, divide-se em República da Espada e República Oligárquica, quando termina, mediante um novo golpe, em 1930 (segunda república), mais uma vez militar, assim como em 1937 (terceira república) e em 1964 (quinta república). A quarta república, de 1946 a 1964, inicia-se com a deposição de Vargas e a assunção à presidência da república, do ministro do supremo, José Linhares, até a posse de Dutra, outro general, que poderia ser acusado de tudo, menos de democrático. Em 1964, bem, voltamos ao refrão: golpe militar-empresarial-midiático. Repressivo, autoritário desde o início, torna-se particularmente assassino com Costa e Silva e Médici, quando toma gosto pela coisa. Militares progressistas, sindicalistas, políticos, estudantes, jornalistas e religiosos são seus alvos preferidos (Brasil: nunca mais; O que resta da ditadura). O golpe que iniciou a quinta república (1964) termina em 1985 (Tancredo, “presidente” sem posse)/1988 (Constituição Cidadã) engolfado em um mar de corrupção, dívida externa astronômica, inflação traumática. Após um movimento de “conciliação” (Diretas Já: 1983, 1984) amplamente apoiado por aqueles que vêm apoiando golpistas desde 1889, instauramos um tal de Colégio Eleitoral, que demonstra o fracasso das diretas celebrando a permanência das indiretas, que elege Tancredo, assumindo Sarney, com o falecimento do ungido. A sexta república, portanto, começa em 1985 ou 1988, a depender dos ventos, e termina com o golpe de 2016, com o que iniciamos esta conversa.

Nada disso seria novidade se a resposta ao fim da sexta república não houvesse inaugurado em terra brasilis aquilo que já acontecia em boa parte do mundo dito desenvolvido: a chegada ao poder de uma caquistocracia plutocrática, misóloga e quase imune à crítica. Processo que na Europa foi chamado por alguns de oligarquização (Mouffe). A resposta político/institucional ao fim da sexta república, após uma horrenda “ponte para o futuro”, foi a eleição de um governo dos piores (2018), ampla e profundamente apoiado pelos ricos e muito ricos, com ramificações no parlamento (duas câmaras) e no judiciário, de cima a baixo bem como por plataformas digitais, para não falarmos de outros bandos e seitas.

Defendo que a sétima república, que se inicia em 2016, é a “novidade” que desafia o pensamento, pois pela primeira vez na história das repúblicas temos como resposta ao golpe a montagem de uma caquistocracia plutocrática, com base social correspondente a mais ou menos 30%, violenta e misóloga, sem programa e/ou projeto construtivo de governo, hegemônica militar e culturalmente, o que é novidade (Schwarz), com ancoragem em bandos milicianos armados e conglomerados teo-midiáticos, com agendas ultra-conservadoras e antidemocráticas, bem como na conjunção entre mercado financeiro, plataformas digitais e agronegócio, que constitui uma plutocracia antinacionalista e demofóbica.

No cenário externo, de que somos em parte reflexo e refluxo, temos como resposta aos maiores desafios já enfrentados pelo assim chamado modo de produção capitalista, igualmente o conluio de uma caquistocracia e uma plutocracia. A estas últimas cabe encaminhar soluções globais para a tempestade perfeita de crises que nos abatem: crise/catástrofre ecológica, talvez a pior de todas (Marques; Danowski; Viveiros; Löwy); crise social, crise econômica, crise sanitária, crise política, crise nuclear. Se, como pensam alguns, a filosofia se realiza como uma espécie de resposta às crises, aos grandes desafios e eventos que se nos mostram com potencial catastrófico, então eu diria que, tanto interna quanto externamente deveríamos tentar elaborar um pensamento que tivesse como preocupação fundamental compreender, circunscrever isso que estou chamando com esta expressão horrorosa de caquistocracia plutocrática.

Caquistocracia ou kakistocracia vem da junção de dois termos gregos, kákistos (pior) e krátos (governo); e plutocracia vem de ploutos (riqueza) e krátos. O termo caquistocracia nos leva ao século XVII, mais precisamente ao sermão de Paul Gosnold, A sermon Preached at the Publique Fast the ninth day of Aug. 1644 at St. Maries, em que Gosnold ora e incita seus fiéis a se oporem à tentativa de substituição de sua “velha Hierarquia”, assim como de sua “bem temperada Monarquia” por uma loucura “parente da Caquistocracia”. Ele está pregando contra “aqueles incendiários Santimoniais, que pegaram o fogo do céu para incendiar o seu país”, contra aqueles que “fingiram que a religião levantava e mantinha uma rebelião muito perversa”, contra os “Neros que rasgaram a mulher da mãe que os deu à luz, e feriram os seios que os chuparam”, contra os “canibais que se alimentam da carne e estão embriagados com o barulho dos seus próprios irmãos”, e por aí segue nosso pregador. No século XIX, Thomas Peacock, em 1829, retorna ao termo em seu romance The Misfortune of Elphin, opondo aristocracia e caquistocracia. Em 1838, nos EUA, o senador William Harper, faz analogia entre caquistocracia e anarquia, em Memoir on Slavery, quando afirma que “a anarquia não é tanto a ausência de governo, mas o governo do pior – não da aristocracia, mas da caquistocracia”. Um pouco mais tarde, em 1877, o poeta James Lowell em uma carta a Joel Banton, pergunta: “É o nosso “governo do povo pelo povo para o povo” ou é antes uma Caquistocracia, em prol dos cavaleiros à custa dos tolos?”. Seja como for, o uso do termo sempre foi muito raro, ressurgindo, seria à toa?, em 1981, na campanha do pai da guinada neoliberal nos países ditos centrais: Ronald Reagan; a mãe, sabemos, foi Margaret Thatcher, em 1980, no Reino Unido; nos países capitalistas ditos periféricos ele é introduzido por Pinochet, para a alegria de Hayek, Friedman e, posteriormente, de Guedes. Desde então, aparece como uma certa frequência, até entrar de vez no debate durante a campanha e vitória do plutocrata que inauguraria a caquistocracia americana: Donald Trump. Lá, quem aplica o termo a Trump, em 2016, é o “acadêmico e blogueiro” Amro Ali, sendo seguido por Salon e por Dan Leger, do The Chronicle Herald. Em 2020, o Le Monde Diplomatique Brasil usa o termo e a noção de caquistocracia para caracterizar os governos de Trump e Jair Bolsonaro (Wikipedia, todo o parágrafo). Poderíamos ainda aplicá-lo aos governos da Hungria, Filipinas, Grã Bretanha, Turquia, Itália, Índia, boa parte da Escandinávia, etc.

Muito simplificadamente, este é o nosso desafio: como pensar, com que categorias, sob que perspectivas a ascensão dessa caquistocracia cujo projeto de governo, se é que faz sentido chamar de projeto/programa, é nada menos que o desmantelamento das bases daquilo que sustenta a vida eco-social, minimamente saudável: os ecossistemas, biomas e recursos naturais; a possibilidade de distribuição igualitária dos bens socialmente produzidos; a participação popular nas decisões de questões de interesse público; enfim, ao conjunto dos direitos das assim chamadas sociedades democráticas.

As caquistocracias são financiadas, geridas e voltadas para a defesa e satisfação dos interesses de uma plutocracia que, crescentemente, deflaciona sua preocupação com a produção e com a distribuição de bens, mercadorias e serviços, aferrando-se vorazmente ao incremento da própria renda e à acumulação voraz de patrimônio. Faz parte daquilo que a torna governo dos piores, ao lado e abaixo de sua homofobia, misoginia, transfobia, racismo, demofobia, ecofobia, etc a misologia, uma certa raiva e aversão ao logos, à argumentação, ao debate qualificado. A misologia, presente em maior ou menor grau em todos os regimes caquistocráticos do planeta dificulta, quando não mesmo inviabiliza, a crítica às suas posturas e posições, decisões e escolhas para cargos-chave de pessoas com comportamentos e atitudes diametralmente opostos e contrários às exigidas por suas funções. Assim, encontramos no atual momento populista (Mouffe), frequentemente ministros de meio ambiente que odeiam ecologia, da economia que odeiam democracia, da saúde que a consideram um bem particular, etc.

Como fazer a crítica, resistir, desmantelar a caquistocracia plutocrática quando faz parte do movimento que a levou ao poder a montagem de um aparato misológico, ancorado em plataformas digitais construídas por empresas que, sozinhas ou conjuntamente, detêm um patrimônio superior aquele de todo um continente? O caráter plutocrático presente hoje nos governos está umbilicalmente ligado aos oligopólios presentes no Vale do Silício. Uma crítica à economia-política das plataformas digitais deverá levar em consideração o fato de que as crises converteram-se agora em técnicas de governo, o que sempre foram, mas atualmente apresentam-se como formas de gestão: crítica como “mera” gestão da crise. Tudo isso vem de longe. Já Hayek pretendia substituir o termo grego oikonomia por katallaxia, a substituição do governo do lar pelo governo das trocas, dos mercados (Chamayou). O ponto de chegada de todo esse processo que começa no entre guerras é aquilo que Chamayou nomeou de catalarquia: “o governo dos governantes pelos mercados”, hoje, sobretudo financeiros. Segundo ele, vivemos hoje sob a regência do “princípio de metagoverno catalártico eficiente”. Se tudo isso fizer sentido, então mesmo os piores e os muito ricos que gerenciam e administram a todos estariam sob o governo dos mercados e, assim, as caquistocracias plutocráticas seriam, ao fim e ao cabo, sociedades ou governanças catalárticas, com o perdão de mais uma palavra horrorosa.

Voltaremos ao tema na próxima oportunidade.

* O presente texto é o recorte de um artigo originalmente publicado na Revista Lampejo, Volume 9, N 2, segundo semestre de 2020. Ele retoma uma discussão anterior que fiz sobre as noções de crítica, logofilia e misologia no II Colóquio Nietzsche, organizado pelo grupo de pesquisa GENI, da Universidade Estadual do Ceará.

Ruy de Carvalho

Ruy de Carvalho é professor de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará.

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Ruy de Carvalho

Ruy de Carvalho é professor de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará.