Cabra Marcado para Morrer: E o filme manifesto da redemocratização brasileira

Brasil, 1985. Mais de duas décadas após o Golpe Militar de 1964, o País dava início a um lento processo de retomada do seu regime democrático. As eleições, ainda que indiretas, recolocaram um presidente civil à frente da nação. E se a Tancredo Neves estaria incumbido o papel de reestabilizar a democracia brasileira, foi também na metade dos anos 1980 que o cineasta Eduardo Coutinho escreveu um dos projetos mais importantes da cinematografia nacional com seu Cabra Marcado para Morrer (1985).

idealizado incialmente como um longa de ficção, o trabalho teve início em 1962 quando Coutinho, integrante do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional dos Estudantes (UNE), decidira filmar a luta das Ligas Camponesas na cidade de Sapé na Paraíba (PB). o argumento do filme partira do assassinato de João Pedro Teixeira, líder do movimento que buscava melhores condições trabalhistas e de vida para o povo da região.

A ideia do projeto seria de reconstituir os eventos que antecederam o assassinato do líder camponês. O filme mesclaria realidade e representação na medida em que o roteiro fosse a base de um trabalho encenado por parte dos próprios trabalhadores e moradores da cidade paraibana. Mas os conflitos entre os operários e os chefes dos engenhos alterou a concepção do longa. A polícia cercou o local e Coutinho com sua equipe só retornam para finalizar o filme 17 anos depois.

“Cabra Marcado” então se torna um filme sobre ele mesmo. E essa verve metalinguística novamente dá a tônica na nossa produção cinematográfica nacional. Mas o projeto não assume esse traço unicamente por uma questão de linguagem. Porque na verdade, a película só teria a força que tem devido às circunstâncias que que permearam sua feitura. A denúncia de toda uma classe e um povo subjugado pela inexistência dos direitos trabalhistas reverbera com mais intensidade pelo testamento que cada uma das personagens divide com a câmera.

Há o testemunho, que é o traço característico do documentário contemporâneo, mas ele emerge em nosso filme não como uma verdade a qual Coutinho busca extrair a todo custo. Pelo contrário. O documentarista está o tempo inteiro ali. Nós o vemos e sentimos sua apreensão e o extremo cuidado empregado a cada depoimento compartilhado. Mas quem irá imprimir a verdade no negativo do filme são as pessoas que entregam seus olhares àquela estória.

Por isso a escuta é um ponto essencial desse trabalho. Uma vez que todas as “entrevistas” realizadas se despojam daquele olhar oficial que o telejornal, sobretudo ali nos anos 1980, empregavam a si. A captação independia das condições de espaço ou tempo. A equipe montava seu cronograma de execução e partia para campo. Na rua ou numa casa, num galpão ou numa várzea, a potência do registro estava na prosódia. Naquilo o que aqueles personagens tinham para dizer.

E essas pessoas também são, sem dúvida, a base desse documentário. É muito forte pensarmos que essa leitura se dá não somente porque a viúva de João Pedro, Dona Elizabeth Teixeira, tenha entrado na clandestinidade por anos e se separado de boa parte dos filhos. Ou porque o agricultor e integrante das Ligas Camponesas, João Virgínio tenha sido torturado por meses e preso ao longo de seis anos pelos Militares. Vamos pensar para além do caráter de excepcionalidade de suas estórias. Vamos além.

Porque o que vemos no fundo das falas de cada um desses cidadãos são um mosaico de um Brasil que além de lutar contra a negligência do Estado, travava a busca de uma identidade perdida ao longo dos últimos 20 anos de regime ditatorial. Na verdade, essa identidade sequer havia se estabelecido ainda. Já que tanto para o homem do campo quanto para as associações mais estruturadas das metrópoles, a luta pelos direitos trabalhistas era uma pauta em emergência.

Assim como se tornava emergente esse ensaio de democracia que iniciou-se em 1985. Coutinho finalizava seu trabalho, foi ao encontro dos personagens centrais da narrativa, buscou reaproximá-los (tendo conseguido com alguns e outros não), mas sem dúvida o realizador conclui seu projeto que aos nossos atentos olhos nos são como a autêntica metáfora de um Brasil em transformação. E que não mais podia se omitir com as injustiças de um modelo oitocentista e atrasado.

“Cabra Marcado para Morrer” é uma amálgama de muitas outras colocações. É um exercício de afirmação de um cinema que se engrandece por sua própria forma e não pelo formato imposto pela TV, por exemplo. É também um filme manifesto da redemocratização brasileira. Ele é uma síntese da fala de João Virgínio que diz não haver nada como um dia após o outro, com uma noite no meio e Deus em cima. É a voz de quem sabe o quão perigoso é pensarmos um regresso à ditadura, aos atos de inconstitucionalidade. Como o pedido de impeachment de um presidente eleito democraticamente, enfim, o ódio que cega a ideologia.

 

FICHA TÉCNICA
Título Original: Cabra Marcado para Morrer

Gênero: Documentário, Ficção

Tempo de duração: 119 minutos

Ano de lançamento (Brasil): 1985

Direção: Eduardo Coutinho

Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.

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Daniel Araújo

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