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Birdman: Ou o exercício de se mapear um mundo sem limites

A cinematografia contemporânea possui em seu cerne o espírito da rebeldia. Posição essa que, na verdade, surge não apenas daquilo o que ela pode transgredir, mas recalcular. Essa forma de olhar para seu próprio feitio, transpondo em algumas medidas seus modus operandi, é o que torna tal arte antes de tudo um gesto de potência. E foi partindo dessa força que Alejandro González Iñárritu criou seu esplêndido Birdman (ou a inesperada virtude da ignorância) (2014).

Antes de qualquer consideração a ser feita sobre esse longa, vale dizer o que ele nos propõe. Estamos falando de um filme construído pelo olhar. Ele é feito pela forma como o vemos, ouvimos, sentimos e fabulamos. Tanto que a sensação que temos é que Iñárritu o apresenta como um mosaico de ideias e discussões acerca do tempo que nos move, a respeito dos “eus” que criamos sobre nós mesmos.

Estamos diante de uma obra completa. Ou incompleta na proposta que ela traz de a digerirmos como um instigante quebra-cabeça. Afinal, assim nos soa os créditos iniciais que aparecem em harmonia com a bateria de Anthony Sanches. O texto e o som, o áudio e o visual se complementam nos preparando para uma viagem através de um filme orgânico. Seja pela artesania que o concede e sua montagem elástica e cirúrgica o conferem isso; seja pela experiência a qual ele nos suscita em sua miríade de hipóteses, teorias.

E quando nos damos conta já estamos dentro dele. Uma imagem ou outra irrompe a tela como um flash? Não importa. Pode ser parte de um prólogo que por direito nada pode ter a ver com a obra. Pode ser uma aviso de que o próprio longa não venha a ser o que de fato é. Mas Birdman o é. Sim, como uma miscelânea de muitos porquês pincelados em poucas respostas o trabalho convida o espectador a pensar sua própria razão de ser. Mas afinal, do que se trata mesmo tudo isso?

Essa pode ser apenas uma das inúmeras questões do impacto trazido pelo trabalho. Mas essa interrogação não vem antes da experiência fílmica em si. E isso Iñárritu deixa claro. Porque ele nos capta pela técnica. Indispensável falarmos da proposta de estarmos diante de um filme feito todo em plano sequência. Onde as cenas seguem uma após a outra nos dando o deleite sensorial de que a câmera não desliga e o corte cênico deixa de existir.

Sim, isso é algo maravilhoso. E de tão utópico, o realizador trouxe a ideia não como um possível, mas um simulacro. Birdman não é um projeto feito em um único  plano sequência. Todavia estes, que nada mais são do que o agrupamento de várias cenas em uma sequência só, se apresentam em longos planos nos dando a falsa ideia de que vemos àquilo tudo sem corte, interrupções. Mesmo porque essa quebra é assumida por volta dos 100 minutos do longa. Voltamos às imagens estáticas do prólogo. Saímos do transe.

De volta ao filme, nos damos conta do lugar do qual partimos. Porque o que vemos não é apenas a estória de Riggan (Michael Keaton), um ator de cinema que busca sair do ostracismo encenando e dirigindo uma peça da Brodway. Vemos mais. Estamos diante de um trabalho que cria essa situação e se assume por meio desse fio narrativo, mas que se coloca num lugar altamente movediço. O enredo é o ponto de partida cuja ordem aciona um argumento embasado por uma crítica feroz ao estar contemporâneo.

Essa premissa, no entanto, não nos é gritada. E num roteiro escrito a oito mãos cada questão levantada nos chega feito um sopro. Quando Riggan pergunta da disponibilidade de elenco, a ideia afirmada é a de que os mesmos atores de talentos hoje trabalham também em projetos de apelo comercial, tal quais os longas baseados em histórias em quadrinhos. É a submissão do ator na contemporaneidade e a dificuldade deste em se colocar como gerenciador de sua própria carreira, mesmo havendo espaço para tanto.

E quando Mike (Edward Norton), espécie de “contra regra” de Riggan, incita o público da peça a “largarem os celulares e se permitirem vivenciar uma experiência de vida real”, é o filme nos confrontando. E antes que a sequência termine, dizemos: caramba, é mesmo! É claro que para trazermos tudo o que esse filme nos sugere precisaríamos de mais uma resenha. E aí também é onde reside sua potência. Porque a vivência desse longa não termine na exibição. Ela se multiplica no momento em que sobem os créditos.

No fim, Birdman soma para o fôlego do cinema. Não pelas nove indicações ao Oscar, das quais quatro venceu (incluindo de Melhor Filme). Mas pela coragem e inteligência com que Iñárritu o pensou. Por ter acreditado que o cinema suporta estórias cujo impacto não emerge do hipnotismo da imagem, mas sobretudo do exercício de partilha do refinamento ideológico. Porque a ideologia é o que ainda nos move para frente do mundo. Mesmo pela projeção de um filme “pirado” e genial como Birdman é.

 

Título Original: Birdman (or unexpected virtue of ignorance)

Gênero: Comédia, Drama

Tempo de duração: 119  minutos

Ano de Lançamento (EUA): 2014

Direção: Alejandro González Iñárritu

Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.

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Daniel Araújo

Crítico de Cinema, Realizador Audiovisual, e Jornalista.