Em algum momento do ido XIX, um conto-novela apresentava um singelo homem de nome Bartleby como sintoma do moderno tempo do mundo; um simples escrivão num escritório de Wall Street resolveu não preferir mais nada, num exercício quase ascético de negação. Ninguém soube ao certo o motivo de seu cansaço, ninguém sabe ao certo se alguma iluminação, sagrada ou profana, lhe foi concedida no curso de seu definhamento até o encontro com a morte. Cartas de amor que não encontraram seu devido destino, extraviaram; sinceros intentos de reconciliação familiar; textos belíssimos, numa certa Babel de textos que não tiveram destinação, perdidos na poeira do tempo; talvez sejam um mero catalisador de um niilismo bem mais visceral que marca a vida moderna, o sem sentido e repetitivo, abstrato, dispêndio vital na cidade da separação, no mundo das finanças, no interior do qual apenas se é gente, apenas se encontra o elo social com o outro quando algumas cédulas no bolso falam em seu nome. Morreu dizendo i would prefer not to, que preferiria não.
Agamben enxerga nesse ato uma potência do negativo, do não, num mundo que a todo custo insiste no seu imperativo categórico de acumulação de dinheiro como fim em si mesmo; se em Aristóteles, no mundo antigo, a potência não necessariamente traduzia-se em ato, em Hegel, no mundo moderno, há a extrema necessidade de atualização de toda potência, no caso a potência estranhada do capital e do poder estatal, a gerir a mera vida, a mera aparência de vida dos concidadãos. Žižek parece encontrar uma certa comédia, uma certa altivez, uma certa insuportabilidade de seu sorriso (ver artigo de Fernando Facó) ao recusar-se participar do tédio, compensado freneticamente no jogo das finanças e seus vícios, que lhe circundava. Prenúncios de um modo de vida que Franz Kafka, posteriormente, captará bem nas figuras de um Processo anônimo, de uma culpa à qual não se sabe o conteúdo material; de uma automatização do julgamento e da sentença na Colônia Penal, com o invento sinistro e grandioso de um general Übermensch, quase um homem renascentista em pleno tempo sem aura; do homem diante da lei, sentenciado por uma espera infinita, interminável.
Baba Aziz – o príncipe que contemplava sua alma, filme de 2006, narra o ensinamento de um senhor Sufi a sua jovem neta, Ishtar, no cenário desértico da Arábia; tantos aprendizados se colhem desse filme, cheio de sumo. A cena inicial do rodopio Sufi, encenada pelo louco asceta que dia e noite diz pela cidade “Varra com toda a sua alma, ante a porta da sua amada. Só então você se tornará seu amante”; exotericamente, essa amada pode ser porventura uma mulher, no entanto, esotericamente, é a própria alma à qual tanto buscamos em nossa jornada interior. Parece ser esse mesmo louco o acusado pelo príncipe melancólico – que perdeu-se no deserto, diante de um lago, contemplando sua face, como um Narciso – de matar seu irmão: “apenas cumpri ordens suas”, respondia o aprendiz de dervixe ao príncipe. O ensinamento do velho Bab’Aziz, indo com a neta pelo deserto a um encontro entre dervixes que acontece de trinta em trinta anos: aquele que tem fé jamais se perde; use aquilo que tem de melhor, no caso do jovem ouvinte, seu canto, e jamais se perderá na travessia. Em tempos de pandemia, uma imagem salta, num lampejo, uma colocação do médico e filósofo árabe, Avicena: “A imaginação é metade da doença; a tranquilidade é a metade do remédio; e a paciência o primeiro passo para a cura”.
O filme Baba Aziz e o rodopio dervixe pode remeter, subitamente, a uma imagem do Occupy Wall Street, em 2011, de uma bailarina em cima do touro, que representa o mercado financeiro em alta (Bull Market), à época, nas repercussões da crise financeira de 2008, quem sabe em cima de um urso, que representa o mercado financeiro em baixa (Bear Market). Em todo caso, ainda se dançava acima da cabeça das corporações e suas jogatinas, em atos de protesto, como tentativa de adiar o fim do mundo, que a cada dia fica mais perto a queda de seu céu financeiro. Casamos em 2020, no plano mundial, impasses econômico-financeiros e ambientais com uma crise sanitária, se não sem precedentes o fenômeno sanitário, ao menos sem precedentes o modus operandi do poder que assim parece anunciar o ritmo que se estenderá nesse perpétuo presente marcado pela emergência como paradigma político; aquele apontamento de Paulo Arantes, em seu livro O novo tempo do mundo (2014), da medicina de urgência como paradigma político do novo tempo parece ser a melhor imagem do mundo que temos no momento.
Dito isto, um verso acerca de uma “dervixe sem mendicância alguma” (no Rodopio Sufi) remeteu a uma pesquisa sobre a dança. Então nos deparamos com J. Lo, a Jennifer Lopez, estrelando um filme de strippers em plena Wall Street, Le Ragazze di Wall Street (2019), as meninas de Wall Street. Uma dervixe sem mendicância alguma, certamente, a dança de Jennifer Lopez aos financistas daquela rua à qual Drummond lamentava-se por não poder, sozinho, dinamitá-la: “porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan” (Elegia 1938). É quando podemos nos deparar, novamente, com a grande astúcia da racionalidade-irracionalidade mercantil, a sua capacidade de integrar, perversamente, todo imaginário libertador. A bailarina acima do urso, em 2011, nos eventos do Occupy, encontra oito anos depois, em 2019, sua imagem perversa, revertida, com a dervixe sem mendicância alguma, Jennifer Lopez, integrando, pelo gozo, mediante figuras do jogo e da prostituição (o que poderia nos remeter a um texto de Walter Benjamin sobre esta temática), o imaginário contestatório a tanto custo, sangue, suor e lágrimas, construído por esta geração resistente a um modelo de acumulação que há muito demonstra sua decadência, sua incapacidade de construir, para todos, uma vida boa, digna de ser vivida.