Augusto e o tamarindo

Não sei o que me levou a esse poeta autor do Eu. Não sei se seu lugar é a poesia ou a filosofia. Misto de ambas e ciência. A filosofia, me ensinou um amigo, é segunda; a poesia que é primeira. A poesia primeira de Augusto é do sabor do tamarindo. É um azedo gostoso. Não sei de que maneira meu pensamento me levou a esse sabor. Posso falar em anjo melancólico da história, ruína-resto e profecias. Posso falar da autofagia e decomposição que se encontra no centro do elo da abstração social do trabalho. Mas não é hora disso.

À sombra do alpendre o pé de tamarindo tornou-se um significante-registro, alpendre que, até onde sei, o jovem Augusto chorava não apenas a perda do pai como suas mágoas. Não, esse não é o momento em que documentarei sua vida; sei o suficiente para falar sobre esse autor me dando o direito e o risco de digeri-lo. Educação paterna, Liceu, Escola do Recife, colégio Pedro II, Leopoldina. Trauma de amor aos dezesseis, perda do filho, filhos civicamente criados, autor civicamente conduzido na vida de homem casado, com esmero e rigor. Spencer, Haeckel, Schopenhauer, Poe, Shakespeare. Bilac. Ana Miranda.

Engraçado é que paraíba no Sul é nordestino migrante e denota menoridade. Augusto andou na Ponte Buarque de Macedo, no Recife; andou na Rua do Ouvidor, Rio de Janeiro. O pai morreu de doença sanguínea, Augusto de romântico: doença pulmonar, tristeza. A causa da tristeza e do seu intento, sua sina: decadência econômica da família, influência cultural de Poe ou Baudelaire, trauma de amor aos dezesseis, querer fazer não uma poesia científica, mas que a ciência fizesse poesia. Deve existir algum inventário, além dos fragmentos dispersos do vínculo entre sua vida, obra e perspectivas de leitura, se não existir: cabe ao menos um mosaico alegórico montado a partir do tempo presente.

Críticos: Drummond, Gullar, Órris Soares, Carpeaux… artigos e teses e dissertações… Prefiro, no momento, o que me disse um outro amigo, antes de ser assassinado pela circunstância da pandemia que é o próprio sistema: Suassuna diz, em Don Pantero, que faria um romance como os de Calderón ou Cervantes se alguma alquimia houvesse entre Policarpo Quaresma, a melancolia sertaneja (que pode ser a descrita por Euclides, num primeiro momento) e mais alguns autores-personagens que não lembro agora. Schwarz optou por Machado. Alguns optam Guimarães. Eu sempre optei Drummond. Mas Augusto, a mim, superou Drummond, porque fala mais de hoje, nasceu póstumo – antes de tudo um forte.

Existem uns dez poemas do Eu que considero centrais. O tamarindo foi porque, no título, ficava tão bonito, tão honesto que eu como sofista e retórico, de gaiato, resolvi colocar lá. Mas eis que uma imagem saltou: a poesia de Augusto tem o sabor do tamarindo. Dentre os poemas, Budismo moderno é o que me salta agora e ficarei nele. “Tome, Dr., esta tesoura, e… corte/ Minha singularíssima pessoa”. Esses dois versos podem nos remeter a como o homem de letras está num intervalo, num limiar entre os referenciais destas terras, é um menor, civicamente, frente a eles: o homem da lei e o homem da saúde; ambos doutores. O homem da lei é parodiado pelo homem de letras em Aves de arribação, do cearense Antônio Sales, no qual Alípio encarna dramas de amor em Ipuçaba até arribar; o homem de ciência, o médico, é parodiado por Machado, na figura do famoso alienista Simão Bacamarte.

    Machado me devolveria a Augusto com sua dedicatória, nas Memórias póstumas, ao verme que primeiro roeu sua carne: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”. Mas essa ponte não funciona agora. Talvez se disséssemos: “Recife. Ponte Buarque de Macedo./ Eu, indo em direção à casa do Agra,/ Assombrado com a minha sombra magra,/ Pensava no Destino, e tinha medo!”. Então nos saltaria à vista o jogo lutuoso e lúdico com o destino expresso no significado barroco da caveira. Então lembraria de Calderón, Suassuna, Walter Benjamin, história mundial do sofrimento, culpa, redenção, alegoria. Mas sobretudo que o barroco talvez seja a contraface do estrondo que foi na história o cadafalso chamado modernidade.

Pedro Henrique

"Anota aí: eu sou ninguém"