AS DITADURAS CAMUFLADAS

[Como a jabuticaba, a ditadura constitucional é um invento brasileiro]

O Tratado de Versalhes foi o instrumento a que recorreram as potências vencedoras da I Grande Guerra para a regulação das penalidades de de crimes de guerra e de outras pendências territoriais.

A França, tendo-se defrontado em 1870 e em 1918 com a Alemanha, no que haveria de ter sido o I e o II Reich, escolheu a imposição ao III Reich de pesada indenização por perdas e danos. Destes proventos viveria a França libertada pelos tempos seguintes, até 1939, quando Hitler romperia com os termos do Armistício.

Ao final da II Guerra, Nuremberg foi elevada à condição de Tribunal Internacional de Guerra pelo qual passaram, sob julgamento, chefes militares, lideranças nazistas, altos funcionários do III Reich e cientistas e colaboradores.

Outrora, os perdedores eram massacrados e as cidades reduzidas às cinzas. Os judeus de Massada anteciparam-se à queda inevitável da “ Fortaleza inexpugnável”, como era conhecida a cidade, cometeram suicídio coletivo diante do avanço dos romanos. Cidades inteiras, reinos e civilizações grandiosas foram, entretanto, destruídas em lutas prolongadas e reduzidas às cinzas da História.

Alguns povos e nações, em seus redutos de moradia, a “polis”, centro propulsor dos impulsos civilizacionais por aqueles tempos beligerantes, encontraram a destruição em suas lutas e desagravos internos. Das guerras intra-muros, revoluções e golpes políticos e militares, muitos vencidos foram sacrificados, outros incorporaram-se aos vencedores, ansiosos por participarem dos lances gloriosos da vitória. Esta é a história do mundo, das lutas fratricidas e das guerras que armaram o dia seguinte dos grandes embates. A mostra do poder destruidor e regenerador das guerras esteve presente em todos os conflitos armados. E, conforme circunstâncias dadas, sob as condições e manobras solertes da diplomacia.

As ditaduras trazem da escuridão dos tempos mais longínquos o rastro da destruição e, diante da renúncia dos cidadãos à sua liberdade, a realidade de uma nova ordem imposta. Os acertos com a posteridade, nestes casos, não são comuns, nem prováveis. A restauração da ordem interrompida realiza-se em decorrência de compromissos e cumplicidades negociadas entre vencedores e vencidos. Embaixadores existem, mais bem servidos de estratégias e dos domínios dos jogos de guerra, do que muitos generais, senhores dos exércitos e dos territórios dominados.

Ditaduras existem, múltiplas e variadas. Todas elas pretendem indistintamente esconder a escalada sobre as liberdades cidadãs com uma operação de camuflagem legal. Nunca lhes faltam os artifícios do toucador jurídico da restauração da democracia…

A força militar é uma injunção apropriada para esses misteres. Ela cuida das estratégias e das táticas úteis à tomada do puder. O exercício do domínio da força sobre as instituições, esse passo, paradoxalmente, é dado pela inspiração assegurada por princípios “éticos” associados diretamente aos instrumentos jurídicos com os quais tem-se por hábito construir e legitimar o governo e forjar um “Estado democrático de direito”.

Nos tempos a que chegamos, as rupturas internas da legalidade política já não carecem de um aparato de força armada. São as leis, o gigantesco aparelho judicial, que desenvolvem a estrutura de uma ordem impositiva.

A representação popular, esteio de toda e qualquer democracia, perde a sua expressão mais legítima, conferida pelo mandato, em decorrência de razões conspícuas e de deliberações monocráticas de juízes que definem e impõem as suas próprias atribuições e competências, geradas à margem dos mecanismos constitucionais. Suas decisões não carecem de justificativas legais obtidas pelos trâmites consagrados pelos líderes republicanos. A decisão coletiva ou monocrática desses pretórios superiores são auto-aplicáveis, sem alternativas recursais visíveis a olho nu.

Tivemos, até agora, no Brasil, dois hiatos de índole autoritária, ainda que cercados das garantias de uma ficção constitucional aparente: o Estado Novo [1937/45] e os governos militares [1964/85].

O primeiro ruiu por lento envelhecimento e desgaste em face do pós-guerra de 1945. O segundo, pela progressiva cooptação dos militares em face do retorno triunfal dos velhos políticos acoitados sob as asas revolucionárias, durante 25 anos de cúmplice entendimento.

Não faltou, entretanto, aos seus construtores acuidade e zelo com os balizamentos e as regras constitucionais. E tanto pretendiam dar-lhe conotação democrática aos mecanismos da ordem instalados que produziram e outorgaram duas Constituições, em 1937 e 1967, a trinta anos de intervalo.

O advento do bipartidarismo [1966/79] na vigência dos Atos Institucionais, abriu caminho para o retorno das velhas lideranças abrigadas no PSD, velho de guerra, na UDN e de novas e poderosas falanges de esquerda. Somos, hoje, para mais de 34 partidos regulares, sustentados por um generoso orçamento alimentado pelos fundos inesgotáveis da União.

Ocorreu, nesse artificioso processo, um movimento de reabsorção, por assim dizer, “lento, seguro e gradual”, como pretendia, aliás, o general Geisel, de “revolucionários” e “anti-revolucionários” na formação da “Nova República”, inaugurada em 1985 e consolidada com a Constituição de 1988.

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.