Aos gênios, minhas reverências, por Francisco Luciano Gonçalves Moreira (Xykolu)

O complexo e exigente sistema lúdico do meu irrequieto espírito sempre rendeu homenagens à engenhosidade, à criatividade e, em estágio mais avançado, à espirituosidade.
Ainda em tenra idade, os meus inocentes olhinhos castanhos claros acompanhavam, com admiração e curiosidade, as mãos hábeis de minha mãe transformarem peças de tecido (adquiridas na loja A Vencedora ou na Casas Pernambucanas, aqui sob o acompanhamento profissional de dona Francisquinha, ícone na arte de vender) – através de sequência metódica, criteriosa, que envolvia o dispor, com jeito e carinho, sobre o tampo da mesa de jantar; o corte preciso à base de tesoura, fita métrica, moldes em papel grosso e até alfinetes; a costura em velha e eficiente máquina PFAFF (sigla que, diziam, significava “Para fazer a família feliz”), em mesa de madeira, pés de ferro e pedal; e, por fim, os arremates com agulha, linha e dedal – em vestidos para ela própria ou para as filhas e em calças e camisas para o marido e filhos. Desfilávamos, sempre nas missas dominicais, o vestuário irrepreensível produzido pela genialidade de dona Enedina, a respeitável professorinha municipal. Ah! As nossas fardas escolares também faziam parte da sua grife. E como elas nos vestiam tão bem!
E esses mesmos olhinhos castanhos claros se espantavam ante a perfeição dos brinquedos de madeira confeccionados pelas mãos hábeis de meu pai, artífice de rara competência no traquejo com serrote, plaina, formão, trado, torquês, martelo, esquadro, pregos, tachas, lixas, pincéis e outros instrumentos de carpintaria cujos nomes já não me vêm à memória quase septuagenária. Recordo-me de um de seus muitos espasmos de genialidade. Presentearam-me, num Natal qualquer, com um cavalinho de plástico branco, com rodinhas vermelhas nas patas que o faziam cavalgar. Ele, o artífice, tratou de dar ao presente um salto de qualidade (“up grade” nos tempos atuais), produzindo uma charrete em madeira, com todos os apetrechos que compunham esse transporte de passeio da época, a qual, atrelada ao cavalinho, exibia-se à perfeição, atraía a atenção das pessoas e enchia de orgulho o menino proprietário daquela verdadeira obra de arte que levava a assinatura do genial senhor Expedito, o requisitado mestre de obras.
Já na pré-adolescência mantive contatos com a genialidade dos repentistas; alguns deles, em dadas situações, não se furtavam a pôr em prática as suas espirituosidades, o que causava risos furtivos das donzelas casadoiras e gargalhadas desavergonhadas dos rapazes conquistadores. Numa época em que o sertão dançava, cantava e se inebriava ao som inigualável da sanfona, com acompanhamento indispensável do zabumba, do pandeiro e do triângulo, a viola preenchia os seus espaços com dignidade e maestria. E os violeiros pelejavam, digladiavam armados de poesia cabocla, versejavam, com melodia específica, métrica zelosa e rimas criativas, estimulados por motes que lhes eram propostos por gente da plateia. Eu aprendi a gostar disso. E o meu irrequieto espírito se alimentou dessa deliciosa iguaria, dessa bem popular manifestação cultural. “En passant”, dois motes carrego comigo desde quando os ouvi ainda adolescente, sobre os quais construí dois de meus textos recentes: um deles, “A pior sorte do mundo é melhor do que morrer”, tema rechaçado, em versos, pelo poeta dos repentes; o outro, “Caminhos de um passado distante cujo mapa se preserva na memória”, cujo versejador defendeu a tese de que não há futuro que não se construa no presente, nem presente que não se assente em alicerces do passado. A vida é um contínuo em direção ao fim. O meu pai, que fora cantador na juventude, dizia que, para ser um bom versejador, o violeiro precisava ter uma boa memória, gostar de ler, saber ouvir, conhecer o mundo pelas frestas do tempo, desenvolver uma boa capacidade interpretativa, ser sensível sem perder o controle das emoções. E arrematava: a voz bem postada e uma boa aparência também ajudam.
Nessa caminhada, engenhosidade e criatividade também encontrei nas frases de para-choques de caminhão. Espirituoso certamente foi o criador da frase “A mata é virgem porque o vento é fresco”. De poesia se acercou quem esta frase lapidou: “A luz dos teus olhos ilumina o meu caminho”. Um engenhoso filósofo uma célebre frase recriou: “Existo porque insisto”. Quão criativo deve ter sido o autor de “A primeira ilusão do homem começa na chupeta”! Sábado último, acorrentada a uma das proteções de ferro da área de estacionamento de supermercado popular, ali bem próximo ao Mercado São Sebastião, uma bem cuidada bicicleta aguardava o seu dono; presa à garupa e apoiada no para-lamas, uma tabuleta continha esta frase bem instigadora: “Cada um viva a sua hipocrisia”. Algo a acrescentar? Talvez não.
A genialidade multifacetada de Millôr Fernandes me abriu as portas da charge. O traço incomparável do talentoso guru do Méier, que chegou a usar o pseudônimo “Vão Gôgo”, deu à charge, gênero essencialmente jornalístico – sem o jornal impresso dificilmente sobreviveria –, fundamentalmente expressa em imagem com forte teor irônico, satírico e cômico, revelador de crítica apurada, de narrativa efêmera, de referencial cotidiano, o mesmo destaque, o mesmo realce, a mesma significação de todas as outras manifestações de sua reconhecida e exemplar capacidade criativa. E o meu irrequieto espírito se deleita todas as vezes que me posto, solene e respeitosamente, diante de um Millôr autêntico.
Recentemente, por acaso, nos meus olhos já desgastados pelo uso instilei gotas de um colírio chamado Quino – chargista e cartunista argentino: o quadrinho revela um soldado corpulento, portando um enorme fuzil intimidador, que, bem à frente de uma Universidade, assim se dirige a um professor: “Uma curiosidade, professor: quantas ideias seu intelecto dispara por segundo?”. Em tempos de política pública voltada para o armamento… isso sugere, no mínimo, uma reflexão.
Reflexão também propõe Venes Caitano, em quadro de página inteira na revista Época, edição de 10 deste mês morrente: um rinoceronte demonstra perplexidade ante a avezinha avermelhada que, delicada e inofensiva, repousa em seu pontiagudo corno ou chifre; a fera não se contém e observa criticamente: “Engraçado, na Internet você parecia um selvagem!”.
E, para fechar este texto, que mais parece uma colcha de retalhos, valho-me da genialidade do chargista e cartunista Sinfrônio, que, na edição de hoje do jornal Diário do Nordeste, presenteia-nos com a imagem que retrata a reação de um ser humano comum ante a perspectiva de um grande 2019 em que o nove se traveste de ponto de interrogação. De imediato, concluo: bem que eu posso ser esse cidadão. Preocupa-me, sim, o que está por vir.
Nada impede, todavia, que aos gênios, neste momento de passagem, eu os reverencie.

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