AMIGOS, É BOM TÊ-LOS, GENUÍNOS, RADICAIS QUE SEJAM — PORÉM INTELIGENTES

Não discrimino os amigos pelas ideologias que abraçaram. Confesso acalentar uma certa simpatia pela “sindrome de Estocolmo”, aquela que faz os torturados amigos dos torturadores… Por isso mesmo não os culpo. Antes os absolvo do julgamento dos homens e das mulheres…

Pois bem, gosto dos amigos militantes, quanto mais radicais, melhores. E fico a imaginar como eu sobreviveria aos seus interrogatórios, quando se tornassem, se a tanto chegassem, vigilantes insurretos, sem perderem, contudo, a ternura.

Tive um deles que encontrava sempre ao passar por São Paulo para atualizar-me sobre o avanço das gestas da esquerda e da direita em solo paulistano. Sentia a necessidade de antecipar os riscos que o futuro guardava para os delinquentes liberais, como eu, incapazes de visualizar o que a sorte nos reservaria em uma nova sociedade, limpa e asséptica dos vícios da maldade burguesa.

Conversávamos por horas perdidas, eu, dominado pela dialética que me seduzia, tentando acompanhar o desenrolar daquele copião de filme sem fim, no qual me via no patíbulo que de mim arrancaria os desvios ideológicos acumulados pela má convivência a vida inteira. Escapei por sorte da conversão que, em muitos momentos, me parecia inevitável. Senti-me, em alguns momentos, como a menina virgem que pressente a perda iminente da sua acalentada virgindade. Resisti, entretanto, como Joana D’Arc, a “poucelle” de Domrémy, diante do assédio dos guerreiros e dos bispos, em defesa dos seus dotes recatados e virtuosos…

Ouvi de um desses amigos, irônico e sarcástico como poucos o são quando navegam pelas águas revoltas ou sinuosas da ideologia praticante:

“ — Assume logo, cara, tens todo o equipamento de um ativista persistente… Deixa-te de bulhas…”

Não cedi à tentação por pouco, perdoem-me a hesitação comprometedora… Faltou suprimento dialético nos meus bornais de cela para saltos tão ambiciosos. A inteligência não foi igualmente compartilhada por todos: a distribuição desses atributos fez-se, sempre, de forma desigual entre os terráqueos…

A um momento dado destas alongadas perorações, ocorria-me adotar alguma providência em socorro da preservação das minhas supostas virtudes, antes do desfecho final com a redenção de todos os inomináveis pecados contraídos do capitalismo.

Apanhava o táxi para hotel, animado pelos derradeiros suspiros de esperança, na expectativa de chegar aos meus lençóis antes de rebentar a revolução social pela qual todos esperávamos sem saber ao certo o que poderia nos oferecer fora das alternativas cogitadas — nada de verdade…

E pensava, no íntimo dos meus temores, que, por descuido, o lance maior da revolução dos paulistas terminaria por alcançar-me, a desoras, fora do tempo da História, como passageiro de um prosaico táxi, em plena avenida São João…

Paulo Elpídio de Menezes Neto

Cientista político, exerceu o magistério na Universidade Federal do Ceará e participou da fundação da Faculdade de Ciências Sociais e Filosofia, em 1968, sendo o seu primeiro diretor. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação e reitor da UFC, no período de 1979/83. Exerceu os cargos de secretário da Educação Superior do Ministério da Educação, secretário da Educação do Estado do Ceará, secretário Nacional de Educação Básica e diretor do FNDE, do Ministério da Educação. Foi, por duas vezes, professor visitante da Universidade de Colônia, na Alemanha. É membro da Academia Brasileira de Educação. Tem vários livros publicados.