Ainda sobre crítica, misologia e caquistocracia

O que pode hoje a crítica quando a crise passa a ser uma técnica de governo ou um tipo de gestão? O que ela pode quando a própria política parece reduzir-se a um problema de “gestão da barbárie”, atualmente sob o comando dos piores, dos mais ricos e dos misólogos?  Talvez então já nem faça sentido pensar em sair de uma crise da qual não podemos mesmo escapar, mas sim, em combater em uma guerra que é preciso ganhar (comitê invisível). Neste cenário, a misologia torna-se um modo de governo e um instrumento de dominação de espectro total , o momento crítico deixa de ser o momento da crítica, a crise do capitalismo transmuta-se no capitalismo de crise perpétua (mais crise, mais governo), nada de crise como kairós, mas como pós-apocalipse sustentável, suspensão indefinida, exceção/emergência permanente (Paulo Arantes); misologia como novas técnicas de governo e de gestão da barbárie e do niilismo globais.

A situação fica ainda mais interessante quando a impoluta verdade passa a ser concebida como quantidade de visualizações, as famosas fake news apenas como notícias mais lucrativas e a verdade deixa de ser uma relação, uma correspondência ou uma evidência e passa a ser uma curtição (teoria da verdade como curtição; verdadeiro é aquilo que tem mais curtidas). Se o algoritmo for o que sustenta a possibilidade da crítica, então a crítica ao capitalismo global contemporâneo deve passar pela crítica à economia política do Vale do Silício (…e de Shenzen), bem como às estruturas mesmas do Estado Algorítmico, que veio substituir o falido Estado de Bem-Estar Social. Aqui, crítica e consumismo de informação, bem como o consumismo energético devem andar juntas, pois a categoria moderna da subjetividade parece ter sido substituída pela noção contemporânea da privacidade e, assim, tornado possível a coexistência de um capitalismo digital e neofeudal em que as empresas de tecnologia desempenham o papel de neo-senhores feudais (Morozov; Castells).

Que alcance teria hoje uma crítica nos moldes propostos pelos autores citados? Bem, ela continua a ser feita, sobretudo nas academias. Que efeito ela produz? Com ela se pode obter certificados, diplomas, prestígio, consolo…. Seja como for, nas ruas, assim me parece, ela tem chegado ou muito tarde ou pouco importa. Devemos, simplesmente, contemplá-la como uma peça fulgurante de museu? Penso que não, afinal essa não é a única forma de relação possível com os mortos.

Como pode “o povo da mercadoria”, igualmente surdo a uma “crítica xamânica da economia política da natureza”(Kopenawa, Albert), enfrentar os desafios que se colocam neste fechamento de ciclo histórico em que parecemos viver? Que expectativa a crítica tradicional justificaria, quando já nos damos por satisfeitos com o simples fato de ter um emprego e chegar vivo em casa? O problema é que o número dos que vivem sem sentido, sem valor, sem trabalho e sem moradia em breve superará, se já não o tiver feito, o número daqueles que esperam permanecer empregados e com residência. As formas tradicionais de resolução e superação deste problema fracassam, sistematicamente, desde o início do capitalismo fascista (Chamayou) da década de 70, ou desde os anos 1990, para outros. O come-come do trabalho morto-vivo-morto, no atual “capitalismo de compadrio ou clientelista” (crony capitalism, Wendy Brown), joga um jogo de vida ou morte na era da informação. Há um intenso e, por que não, esperançoso debate, sobre o processo de produção e valorização do valor no capitalismo na era comunicacional (Kurz) em que, justamente, os serviços desempenham um papel central (Ricardo Antunes), sem que nenhum otimismo seja sequer razoável (Dowbor).  Seja como for, a misologia parece se apresentar como saída desesperada – uma espécie de último recurso da moda – àqueles que, bem ou mal, ainda conseguem se sustentar no e do sistema, como corajosos malabaristas sem rede de proteção (social, inclusive), nas atuais sociedades governadas por caquistocracias plutocráticas.

Na primeira queda, nós, recém modernos, perguntávamos a nós mesmos por que, voluntariamente, havíamos nos tornado e permanecíamos servos. É que éramos “felizes”! Hoje, adoraríamos ser explorados mas, infelizmente, isto custaria caro ao capital financeiro e, assim, passamos da servidão voluntária à servidão privilegiada (de La Boétie a Ricardo Antunes)! Bem vindos à servidão do senhor! Mais fácil um rico chegar ao céu que um pobre conseguir um emprego, pois ainda que o consiga, correrá um enorme risco, o de ser destroçado pelo novo Minotauro, desta vez, Global (Varoufakis).

 

Ruy de Carvalho

Ruy de Carvalho é professor de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará.

Mais do autor

Ruy de Carvalho

Ruy de Carvalho é professor de Filosofia da Universidade Estadual do Ceará.