“Acorda, Senhor.” A perfeita síntese entre a esperança e a liberdade.

A intimidade de acordar alguém é reservada a poucos amigos ou mesmo a pessoas muito íntimas. Esse gesto implica duas dimensões básicas da condição humana: a primeira é a esperança revelada na expectativa do súbito retorno de quem dorme; a segunda assenta na ideia da liberdade de se deixar acordar, limite revelador da intimidade entre os sujeitos envolvidos. Há ainda uma terceira dimensão, que se revela na ação do acordar confirmada pelo o ato de se por de pé, configurado no gesto de atenção a quem chama.

No momento seguinte, aquele(a) que acorda toma pé da situação real. É envolvido(a) por uma ambiência nova, às vezes sem muito nexo, contudo se vê obrigado a estar em movimento. Pois, quem acorda abandona de imediato a letargia, obriga-se a ações concretas de mudanças. Não restando outra saída, parte então para o fazer… Aqui, portanto, se misturam a um só tempo: esperança, liberdade e ação. Três das mais profundas dimensões contidas na grafia da expressão: “acorda, senhor.”

Para ilustrar esses argumentos, chamo atenção ao evangelho narrado por Mateus (cap 8:25ss) ao citar: que os discípulos e o próprio Jesus se encontravam em meio a uma grande tempestade. Segundo o evangelista, enquanto os discípulos tremiam de medo, Jesus simplesmente dormia no canto. Até que um dos seguidores ousou a liberdade de acordar o Senhor, depositando nesse gesto toda sua esperança. Somente nesse contexto de liberdade e esperança as palavras “Acorda, Senhor!” ganham sentido.

Assim como no cenário bíblico, atualmente estamos em uma profunda tempestade. Nossos barcos parecem sucumbir às imensas ondas que se impõem diante de nossos olhos.

A onda provocada atende por COVID-19, um pequeno ser vivo, que avança diante da realidade causando a primeira pandemia realmente globalizada. O impacto se inscreve sobre a história no mesmo patamar da peste negra e da gripe espanhola, pondo a um só tempo metade da humanidade de joelhos e lideranças políticas apequenadas.

O que há em comum nas duas tempestades? O medo de morrer afogado. Como estar nas profundezas do oceano, o vírus atrofia os pulmões retirando do indivíduo a capacidade de respirar.

Na hora em escrevo esse texto o mundo enterra centenas de milhares de pessoas e as estatísticas não são animadoras. Os gestores em Políticas Públicas torcem e retorcem seus recursos numa busca insana pela acomodação da vida. Uns são obrigados a rever seus posicionamentos arianos, outros apostam no negacionismo. Enquanto o medo parece nos atrofiar Bergoglio lembra “Nesta barca, estamos todos”.

No entanto, eis que Francisco, o papa, se apresenta. A tradição católica traz em sua riqueza cultural um gesto guardado para seu líder denominada de benção Urbi et Orbi – da cidade de Roma, para o mundo – . É quando o pontífice se empodera de uma liturgia antiga e do alto da sua estatura fala, primeiro à sua comunidade local – Roma, depois para sua comunidade global – o mundo. Se ficarmos atentos à tradição do cristianismo, esse gesto nos remonta aquela barca à deriva. O porquê? Porque algumas traduções nos revelam que o corajoso apóstolo que ousou na liberdade de acordar o Senhor foi Pedro, o mesmo que mais tarde (Mateus 16:17) iria receber as chaves e fundaria a tradição do papado.

Nesse contexto, a expressão “Acorda, Senhor” se revela numa profunda intimidade, simplicidade e ousadia. No sentido humano e no sentido teológico essa é uma expressão muito comum utilizada pelos biblistas. Na passagem do antigo para o novo testamento, a ideia da distância foi substituída pela ideia de ausência ou sono em que Deus [agora Jesus] se encontrara e nada fazia para salvar seu povo. Contudo, a proposta do exegeta não é colocar Deus na figura do irresponsável que abandona os seus quando estes mais precisam. E sim, de impor a esse povo o necessário movimento de ir ao encontro do seu Deus. Ir ao encontro de Deus, aqui, revela as três dimensões importantes: a esperança e a liberdade e exige, por consequência, ação!

Para agir é preciso refletir e Francisco não poupou argumentos revelando em seu diálogo com Deus que “Encontramo-nos assustados e perdidos. Igual aos discípulos do Evangelho, surpreendeu-nos uma tempestade inesperada e furiosa”. O papa lembrou da raiz dessa hecatombe ao denunciar que “Na nossa avidez de lucro, deixamo-nos absorver pelas coisas e transtornar pela pressa. (…) não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo”.

Essas duras palavras provocam em nós algumas reflexões: que guerras são essas? Quem grita? O que dizem? Quem são os pobres? Justamente agora que somos obrigados a olhar o mundo de nossas janelas, presos pela própria ideia de sociedade que ajudamos a construir, essas e outras perguntas se apresentam como imponderáveis.

Sem perceber fomos privados pela mesma lógica produtivista que tanto nos formou. Agora nos assusta o fato de 3 bilhões de pessoas confinadas, mas nunca percebemos que durante muito tempo normalizamos o fato de 4 bilhões – a outra metade – ser privada das riquezas que muitas vezes ajudaram a construir. O grito dos atingidos pela fome – 800 milhões de pessoas, sendo boa parte menores de 8 anos de idade – não nos atingiu. A dor causada pela privação da guerra, a prisão enquanto elemento político não nos afetou. O mercado que agora pede socorro ao Estado é o mesmo que até ontem imprimia sua ganância e apostava no consumo. Os patrões se obrigam a enxergar nos trabalhadores suas reais importâncias. Nossa avidez pelo lucro nos deixou surdos, cegos e insensíveis. Descobrimos que o mundo cinza e o culto ao (des)envolvido desenhado pela modernidade não se sustenta.

O movimento realizado por Francisco, no último dia 27 de março, quando foi ao encontro de Deus e pedir sua ação foi ousado. Sua esperança o fez subir aquele pequeno alto (na praça de Pedro) para simbolizar a subida ao monte, local sagrado de encontro com o divino. Seus passos lentos carregavam em si todo o peso da história revelada pela condição humana, em especial a condição moderna da humanidade. Do ponto de vista ontológico aquela caminhada o colocou na mesma trilha de Moisés, Abraão e José. Do ponto de vista histórico, todas as vezes que isso ocorreu, o mundo recomeçou em outros patamares – aqui novamente a liberdade e a esperança se encontram.

Olhando daqui, vejo que Francisco é grande sem precisar ser! Fala para o mundo sem precisar de multidões. Refunda a responsabilidade do papado de se religar a Deus. Restabelece a liga que estava em falta e põe em prática o evangelho em que diz: “tu és Pedro e sobre está pedra edificarei minha igreja…”

Francisco mostra ao mundo que o vazio perde seu sentido quando a humanidade vem à frente. Renova a aliança entre Deus e o homem, um verdadeiro pacto dado na revelação amorosa, que encoraja e se agiganta diante dos desafios. Eis aí a diferença de um grande líder. Ele fala sem plateia e o mundo lhe ouvi, porque emana confiança. Ele não precisou dizer “o papa sou eu” para revelar sua grandeza. Quem precisa disso é porque já perdeu a autoridade.

Por fim, na altura em que se encontra a barca, tendo que enfrentar fortes e tenebrosas turbulências, eis que alguém se aproxima do senhor e no ápice da sua ousadia deixa revelar toda sua esperança para balbuciar delicadamente toda sua liberdade ao dizer: Acorda, Senhor.


Rafael Silva

Professor Universidade Federal do Ceará Mestre em Administração Doutorando em Sociologia pela Universidade de Coimbra-PT

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